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Com, contra e para além da violência policial

Por Simone da Silva Ribeiro Gomes, doutoranda em sociologia (IESP-UERJ), para o dossiê UniNômade

Com, contra e para além da violência policial – Reflexões a partir de um turbulento junho.

A centralidade do debate na esfera pública sobre a desmesura da violência policial a partir das manifestações de junho, ocorridas no Brasil, parece essencial para discutir a nossa sociedade contemporânea. As falas sobre a problemática da polícia, quer sobre a desmilitarização; sua ação nas favelas e periferias – cariocas, mas também em um quadro mais amplo, nacionais; número de mortos e a perspectiva internacional, com dados das mortes por ação da polícia comparáveis à países em guerra; os autos de resistência, figuram atualmente na agenda de discussão depois do que ficou conhecido como “jornadas de junho”.

Tendo ocorrido a partir da metade de 2013, impulsionados pela pauta da (i)mobilidade urbana nas grandes metrópoles brasileiras, tendo a figura do MPL – Movimento pelo Passe Livre, como um dos protagonistas, as manifestações de rua que voltaram ao cotidiano democrático nacional sofreram de um processo de multiplicação de pautas poucas vezes antes visto. A violência policial foi a mais emblemática dessas, atraindo olhares principalmente da mídia internacional, mas curiosamente pouco figurando na grande mídia nacional, cuja atenção foi capturada pela presença dos “black blocs” tupiniquins, jovens encapuzados e vestidos de preto, gritando as palavras de ordem: “poder popular”, envolvidos em episódios de quebras de vidraças de banco – nisso, afinal, consistiria a tática importada da Alemanha da década de 80 – foram apontados como os grandes algozes da mobilização espontânea das massas.

Pensando com a violência policial, partimos da contingência do desaparecimento do pedreiro de 47 anos, Amarildo de Souza, na favela – pacificada – da Rocinha, em julho desse mesmo ano, que trouxe à tona o estado brutal policial que toma conta das favelas e periferias do Rio de Janeiro – mas não exclusivamente dessa cidade. As palavras de ordem “cadê o Amarildo”, eram onipresentes nas ruas, auxiliadas inclusive pela projeção em edifícios no entorno das mobilizações de sua foto e dos dizeres “onde está o Amarildo?”. O pai de sete filhos, ainda em 2013 ficamos sabendo, tinha sido assassinado por policiais da UPP- Unidade de Polícia Pacificadora1, o que resultou na discussão sobre o excesso de violência da policia militar brasileira, mas também sobre a fragilidade do processo de pacificação das favelas cariocas, deflagrado em 2008.

Ao desnudar a lógica da UPP, em que a base policial deveria proteger os habitantes das favelas da violência do tráfico de drogas, mas, em uma realidade demasiado perversa, são submetidos à outra ordem, que inclui humilhações, desaparecimentos e outras violências, o rei ficou nu, seria afinal nossa polícia sempre tão truculenta e demoramos a perceber? Dessa forma, a pauta das manifestações, desde junho incluiu a violência policial, baseada principalmente nas demonstrações de força sofridas nas ruas, reflexos da truculência habitual das forças policiais nas favelas e periferias das grandes cidades.

Casos como o do Amarildo, cuja ossada não foi encontrada até o ano seguinte2, evidenciaram para as classes média e alta do país o estado de brutalidade policial a que vivem submetidos os habitantes mais pobres das grandes cidades. Sua concomitância com o momento de grandes mobilizações nas ruas mostrou também, o latente despreparo da polícia para lidar com quem devia proteger. Foi a partir das cenas tornadas frequentes de abusos de poder policial; falta de critério no uso de armamento não letal nas ruas; balas de borracha disparadas indiscriminadamente; bombas de gás lacrimogêneo cujos efeitos deletérios foram sentidos por muitos dos que participavam dos atos, até as prisões arbitrárias – de jovens, negros e pobres, em sua maioria, que a pauta da desmilitarização da polícia ganhou corpo.

A militarização da polícia é uma herança colonial, emblema de um país cujas instituições responsáveis para manejar os conflitos não foram reformadas desde o século XIX, tendo o regime republicano instaurado em 1889, pouco modificado dinâmicas desiguais sacramentadas em leis. As instituições coercitivas, desde esse período, sempre identificaram as manifestações de rua como uma ameaça à ordem pública. Nesse sentido, uma polícia de rua submetida ao decoro militar, com o treinamento para a guerra, no bojo de uma combinação teórica na qual haveria um inimigo a ser aniquilado, e prática, em que se defronta com seus concidadãos na rua, mostra os perigosos efeitos de seu treinamento em um espaço civil.

A população nas ruas que começou a gritar pelo fim da policia militar (“não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar”), reagiu quase inconscientemente ao fim de uma das quatro polícias militares ainda em vigor no mundo. Dessas, somente a Turquia é uma democracia e compartilha da militarização de sua polícia, curiosamente, um dos países que faz parte do ciclo global de mobilizações, deflagrado em 2013, com intensas mobilizações igualmente a partir de uma questão urbana, a derrubada de um parque no centro de Istambul. Ademais, a ONU desde 2012 já recomendou firmemente que o Brasil desmilitarizasse sua polícia, demonstrando a importância e visibilidade da questão em um panorama internacional3.

No entanto, apesar de a violência policial e das falhas das políticas de segurança tupiniquim já serem denunciadas há anos por movimentos sociais e organizações internacionais, no momento em que “o gigante acordou”, a violência nas manifestações surgiu de forma dicotômica: na qual os atores seriam os vândalos (na representação da grande mídia) X os policiais (segundo os manifestantes, nas ruas). Uma evidência para isso foi o lema “sem violência”, que ecoou nas manifestações, reverberando após o acirramento da repressão policial indiscriminada, mas também referia-se aos “vândalos”, na busca da pacificação das mobilizações.

É importante entender, para além da violência policial patente nas mobilizações iniciadas em junho, em que o passado ditatorial brasileiro vem à tona, no seu frágil relacionamento entre polícia e cidadãos, onde o anterior funciona a partir do uso da força e controle territorial. O debate público sobre a violência policial, entretanto, precisa incorporar os elementos externos às manifestações, sobretudo a licença para matar de algumas polícias, como demonstram os dados da HRW – Humans Right Watch, de 2013, no qual, oficialmente, a polícia carioca foi responsável por 214 mortes e a de São Paulo por 251, somente nos primeiros seis meses de 20124. A alegação costumeira de “autos de resistência”, ou seja, mortes em confronto com a polícia mascara o número oficioso do genocídio perpetrado pela força policial discricionária nas favelas e periferias.

Finalmente, pensando contra a violência policial, alguns elementos trazidos para o debate apontam para as raízes históricas da legitimação da violência brasileira, em que o Brasil teria sido incapaz de pacificar o espaço público. A segurança pública foi pensada a partir de conflitos de classe durante boa parte do século XX, mas atualmente o debate autonomizou-se. A partir do medo e da insegurança expressados nas ruas em 2013, foram desveladas as dinâmicas de poder e arbitrariedade da polícia em distintos espaços. É a partir daí que lutamos e resistimos, cotidianamente, nas favelas e periferias das grandes cidades, mas também em suas ruas….venceremos!

NOTAS

1O inquérito demonstrou que Amarildo foi torturado e morto pela polícia, resultando no indiciamento de 10 policiais. Para saber mais: http://www.nytimes.com/2013/10/03/world/americas/brazilian-officers-will-be-charged-with-torture-and-murder.html?_r=2&

2 Ao menos até Fevereiro de 2014, momento em que escrevo esse artigo.

3Para saber mais: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1097828-paises-da-onu-recomendam-fim-da-policia-militar-no-brasil.shtml

4Segundo a HRW- Humans Right Watch, em seu relatório de 2013, disponível em: http://www.hrw.org/world-report/2013/country-chapters/brazil?page=1

 

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