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Comum, entre Marx e Proudhon

Por Toni Negri, no il manifesto, em 6/5/2014 | Trad. UniNômade

Resenha de Commun. Essai sur la révolution au XXIe siècle, La Découverte, Paris, 2014, pp. 593

Antonio Negri resenha o recente livro de Pierre Dardot e Christian Laval sobre o conceito de “comum” (baixar grátis aqui). Para Negri, o comum além de superar a dialética público x privado, permite situar os problemas práticos da organização, instituição e produção no contexto das lutas hoje, com conceitos fortes para enfrentar as formas de dominação capitalista. No livro dos autores franceses, no entanto, Negri aponta insuficiências devido à tendência proudhoniana do “associacionismo” — que transcende as relações de produção capitalista — e da ideia de propriedade como roubo — e não, como em Marx, como concreção de relações de força decorrentes da relação do capital, que é um processo produtivo de integração do trabalho. (N.E.)

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A metafísica do comum

Depois de seu livro juntos, Marx. Prénom: Karl (ed. Gallimard, 2012), Pierre Dardot e Christian Laval nos apresentam um Proudhon. Prénom: Pierre-Joseph. Na Itália, tal título fictício bastaria para liquidar o livro, lembremos a operação reacionária conduzida, entre outros, por Pellicani e Coen na revista Mondo Operaio nos anos 1970, sob inspiração de Bettino Craxi. Mas este livro não está por certo do lado deles. Ele introduz na França e reabre, — assim esperamos — na Europa, o debate sobre o “comum”.

Vamos então ao livro. Enquanto a obra anterior dos autores era caracterizada por uma resoluta “des-teologização” do socialismo (vale dizer, por uma argumentação crítica contra qualquer teoria socialista que tentasse encapsular o projeto final e a força de libertação comunista dentro do desenvolvimento capitalista); a nova obra se caracteriza por uma resoluta “des-materialização” do conceito de socialismo — esta é a operação desenvolvida neste Ensaio sobre a revolução: uma verdadeira e própria liquidação do materialismo histórico, da crítica marxista da economia política do capitalismo avançado, tudo em nome de um novo “princípio”. “Comum”: não comuns [commons], não “o” comum, mas “comum” — “comum” como princípio que anima tanto a atividade coletiva dos indivíduos na construção de riqueza e vida, quanto o autogoverno interno a esta atividade.

No livro, um quadro ideal preciso é apresentado e discutido, segundo este escopo. Ele parte “da prioridade do comum como princípio de transformação do social, afirmado antes de ser estabelecida a oposição entre um novo direito de uso e o direito à propriedade”. A seguir, se estabelece que “o comum é princípio de libertação do trabalho, além do mero princípio de que a empresa comum e a associação devam prevalecer na esfera da economia”. É afirmada, além disso, “a necessidade de refundar a democracia social, assim como a necessidade de transformar os serviços públicos numa verdadeira instituição do comum. Enfim, é estabelecida a necessidade de formar comuns mundiais e, nesta finalidade, “inventar uma federação global dos comuns”.

Uma visão idealista

A explicitação política do princípio do “comum” é precedida de um longo trabalho de análise crítica e construtiva, desenvolvido em dois tempos. Um primeiro — chamado “a emergência do comum” — consiste em reconstruir o contexto histórico em que se afirmou o novo princípio do comum, bem como em criticar os limites das concepções de comum e comuns, elaboradas nos últimos anos por economistas, filósofos e juristas, bem como por militantes.

Na segunda parte — “Direito e instituições do comum” —, o livro pretende mais diretamente refundar o conceito de comum. Faz isso situando-o sobre o terreno do direito e da instituição. O livro, que nasce da influência de um seminário — “Do público ao comum (realizado de maneira ampla e contraditória no Collège International de Philosophie, de 2011 a 2013) — aprofunda a ideia de comum ao referi-la, fundamentalmente, àquela corrente do “socialismo associacionista”, que vai de Proudhon à Jean Jaurès e Maxim Leroy e, a seguir, até Mauss e Gurvitch, até chegar ao último Castoriadis (aquele de Instituição imaginária do social) — sem nunca subtrair-se à tentativa de absorver qualquer traço do pensamento marxiano, neste desenvolvimento “idealista” da projeção de um socialismo vindouro próximo.

Desenvolvimento idealista: não poderia ser outro o efeito produzido pela crítica e reconstrução do conceito de comum, neste livro, porque, retomando Proudhon contra Marx, à ruptura correta e sempre mais efetiva contra qualquer telos do socialismo, se segue dessa manobra uma não menos obsessiva desmaterialização do conceito de capital e do contexto da luta de classe — por conseguinte, no fim do livro, não se entende mais como o comum é reivindicado, onde estão os sujeitos que o constituem, e quais são as figuras do desenvolvimento do capital que lhe desdobram o pano de fundo.

Num cenário idealista, do livro sopra um vento gélido — um pessimismo forte, quase uma constatação resignada de que a produção de subjetividade, da parte capitalista, seja materialmente implacável e historicamente irresistível. Diante do que estão a submissão dos trabalhadores e a internalização do comando, sempre mais duras na época do capital cognitivo — como gostaria a atual ciência do management, e como testemunharia o novo sofrimento sentido pelos próprios trabalhadores (psicologia do trabalho adjuvante).

Então, que mais é o “comum”? Uma comunhão de sofrimento? Algum deus que nos virá salvar? A mim parece, para retomar o conceito de “comum”, que se deva indubitavelmente começar seguindo uma via análoga àquela percorrida por Dardot-Laval. A crítica que eles conduzem à noção de “comum”, seja em sua figura teológica, jurídica, ecológica — em suma, em todas as formas de objetivação/reificação que se repetem incansavelmente nesse fio condutor — seja também naquela filosófica, que tende a banalizar o “comum” como um novo ou alternativo “universal” — essa crítica é uma via justa.

Um verdadeiro conceito de “comum” pode dar-se somente como produto de uma práxis política consciente e, assim, compor-se num processo instituinte, num dispositivo de “instituições do comum”. O “comum” encontra sua origem não em objetos ou condições metafísicas, mas somente na atividade.

Além da tragédia dos comuns

Neste quadro, a crítica que Dardot-Laval conduzem à ecologia dos comuns [commons] de Elinor Ostrom é sem dúvida magistral, porque esclarece a natureza liberal e individualista dessa ecologia — em que um sistema de normas é trazido à baila para responder ao problema da “tragédia dos comuns”. Seguindo a via indicada por Dardot-Laval, nós nos encontramos rapidamente diante de uma encruzilhada — que se abre quando é alertado que o comum não é simplesmente produzido por uma atividade genérica (antropológica e sociológica) — mas, sim, produzido pela atividade produtiva. Aqui, o confronto com Marx se torna inevitável e decisivo. Dardot-Laval aparentam, no entanto, estar esmagados pela complexidade da questão.

Por um lado, de fato, os autores estão encorajados pelas próprias hipóteses radicalmente dessubstancializadoras (idealistas?) do comum, subvalorizando a sua dimensão “social” — inclusive daquela proposta de Proudhon; por outro lado, ao acusar os marxistas que enfrentaram o tema do “comum” (tendo bem presente a nova figura “social” da exploração) de serem “inconscientemente” proudhonianos.

Vejamos como se põe o problema, com quais apontamentos poderemos caminhar para além desta confusão.

É de todo evidente (e sem dúvida também a Dardot-Laval), que o desenvolvimento capitalista atingiu um tal nível de “abstração” (no senso marxiano de definição do valor) e, portanto, uma capacidade de exploração que se estende por toda a sociedade. Nesta dimensão da exploração, se constrói uma espécie de “comum perverso”, de uma exploração exercida sobre e contra a sociedade inteira. Sobre a vida inteira. O capital se tornou biopoder capitalista. Em Dardot-Laval, o alerta a respeito desta globalidade e pervasividade do biopoder, — ou melhor, da potência do “comum perverso”, — retoma as razões da crítica à teleologia, tão denunciada no socialismo marxista, quase como se o dado do biopoder por si só já levasse a uma nova deriva teleológica. Porém, assinalar corretamente o limite marxiano da análise dialética do desenvolvimento capitalista pode, talvez, anular ou nos fazer esquecer as dimensões atuais do biopoder capitalista?

A crítica que Dardot-Laval fazem à “exploração por desapossamento”, conforme D. Harvey, e de todas as análises neomarxistas que apareceram no modelo marxiano da “acumulação originária”, análogas ao que está havendo agora em nível global — isto é, uma “exploração extrativa” — essa crítica é equívoca, porque termina por negar o problema, ao mesmo tempo em que critica sua solução. E é tanto mais equívoca porque ignora totalmente a função do capital financeiro (ou, mais diretamente, a função produtiva do dinheiro, juro e renda), ao acusar outros autores marxistas — atentos à recomposição do rentismo como instrumento de exploração e nova figura do lucro — de terem reduzido (proudhonianamente) o lucro a mero “roubo” de um comum substancializado, “coisificado”.

Um roubo de mais-valor

Aqui, a posição de Dardot-Laval parece esquecer, nos fogos da crítica, os lineamentos mais elementares do pensamento marxista — e, em particular, que o capital não é uma essência independente, um Leviatã, mas sempre uma relação produtiva de exploração. E que, na condição atual, o capital financeiro investe o mundo produtivo socialmente organizado, acumulando nos procedimentos de extração de mais-valor: quer a exploração direta do trabalho operário, quer o desapossamento de bens naturais, territórios e estruturas de bem estar social [welfare], quer a extração indireta de mais-valor social, por meio do exercício da dominação monetária. Se quiserem chamar tudo isto de “roubo”, não me escandalizarei — não se está sendo proudhoniano porque ao usar tal ou tal palavra, desde que se dê a ela o significado que hoje o capital lhe dá: isto é, um modo de acumulação diretamente enervado em novas formas do processo laboral e de sua socialização — tanto na dimensão individual, quanto em sua figura associativa. Quando Marx diz que o capitalista se apropria do excedente de valor que a cooperação entre dois ou mais trabalhadores produz, não nega decerto ao mesmo tempo que o capital também seja apropriado pelo mais-valor dos trabalhadores individuais. O “roubo” integra a exploração de mais-trabalho e torna o capital tanto mais indecente quanto mais a produção se desenvolve.

No Marx de Dardot-Laval, se sentia pulsar uma veia foucaultiana (penso com isto uma abordagem histórica atravessada pela atenção às subjetividades agentes). Agora, essa veia floresceu — florescendo, ela é conduzida em direção à frutificação, numa consideração vivaz e dinâmica da história do capitalismo. Aqui há — na ausência de uma metodologia historicamente reflexiva — uma abordagem, certamente, durkheimiana (talvez diretamente categorial, kantiana) ao desenvolvimento capitalista. O capital fica parecendo uma máquina atemporal e onipotente. A “subsunção real” não é mais vista como conclusão de um processo histórico, mas considerada apenas como figura do processo da “reprodução alargada” do capital.

Sem a classe e o capital

Ao lado disso, todavia, uma certa historicidade é reintroduzida na consideração — de maneira historicamente distendida — da eficácia destrutiva (sempre mais realizada) da produção capitalista das/sobre as subjetividades no trabalho. A luta de classe não existiria mais. Esta parece ser a hipótese conclusiva de uma concepção que começou com a exclusão da luta de classe — entendida marxianamente — pela constituição do conceito de capital. Parece que a desmaterialização do “comum”, assim conduzida tão laboriosamente (e a definição exclusiva do “comum” como “ação”, como princípio de atividade), implica de maneira correspondente a desmaterialização da “luta de classe” — como se também a exasperada insistência sobre uma produção capitalista de subjetividade laboral, interiormente assujeitada pelo comando, implicasse a negação da subjetividade produtiva enquanto tal.

Mas sem subjetividade produtiva não há nem sequer conceito de capital. Assim se conclui que, diante da mutação histórica da exploração (no livro, incompreendida), diante da definição do capital sempre mais como “poder social” (no livro, negada), diante da emergência tão intensificada do “comum”, imposta à realização de um novo modo de produção (e se nota que esta emergência já determinou novas formas de processo laboral) — em face de tudo isto, se esquece que só o “trabalho vivo” é produtivo. Que só a subjetividade é resistente. Que somente a cooperação é potente. Que o comum não é, portanto, simplesmente “atividade”, mas atividades produtivas de riqueza e de vida — e transformadoras do trabalho. O comum não é um ideal (pode também sê-lo), mas é a forma mesma na qual a luta de classe hoje se define.

Perguntamos a Dardot e Laval: se o comum não é hoje um desejo plantado pela crítica da atividade produtiva, e se somente brilha diante de nossa consciência atordoada ante a violenta penetração do biopoder, se é simplesmente um “princípio” — que coisa então nos leva a lutar? Dardot e Laval parecem responder que o princípio do comum é uma categoria da atividade, da instituição: isto não se funda sobre o real, mas funda o real; não o conquista mas (eles longamente argumentam enquanto o conceito vai pra outro lugar) eventualmente o administra. Por que então lutar?

Além de cada uma das críticas, este livro reabre o debate sobre o comum e ninguém se surpreenderá que, dessa forma, seja reaberto também o debate sobre o comunismo.

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