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Entre o choque e as finanças: as UPPs e a “integração” da favela à cidade

Por Alexandre F. Mendes

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Na mesma semana em que o coordenador das UPPs, coronel Frederico Caldas, anuncia a transferência de 70 policiais da unidade da Rocinha alegando que “fatores psicológicos” abateram a tropa depois do caso Amarildo, a presidenta do Instituto Pereira Passos, Eduarda La Roque, divulga o lançamento, para 2014, de um Fundo de Investimentos em Participações das UPPs (FIP – UPP), com o objetivo de “organizar uma carteira de investimentos sociais em comunidades pacificadas e não pacificadas e oferecer as cotas do fundo a investidores brasileiros e estrangeiros” (La Roque, Jornal Valor Econômico, 1/11/13).

Esses dois fatos, a meu ver, não se articulam apenas pela coincidência temporal, mas, principalmente, por evidenciar as linhas, cada vez mais distantes, que separam uma relação estabelecida entre as UPPs e os movimentos sociais de resistência (a campanha Cadê o Amarildo) e a governança da “pacificação” realizada por mecanismos de estado e de mercado (a campanha pela “integração” entre favela e cidade). Nossa proposta é ensaiar rapidamente uma compreensão da crise política das UPPs tendo como ponto de partida essa distância estabelecida entre as mobilizações democráticas atuais e as tentativas de captura ensaiadas pelo dispositivo público-privado.

No primeiro caso, um movimento multitudinário, composto por uma rede heterogênea de sujeitos, faz emergir o fato escandaloso e dramático dos desaparecimentos forçados e das torturas policiais em áreas de UPPs (130 desaparecidos somente em 2010, segundo dados do Instituto de Segurança Pública – ISP). No segundo, temos a redução dessa composição à denominada “classe C”, aquela que consome produtos e serviços e, ao mesmo tempo, almeja uma gradativa ascensão social. A nova classe que luta (e como luta!) é conduzida pelo imperativo do “choque de formalização” e da “inclusão do mercado”: jus imperii e lex mercatoria passam a caminhar juntos na nova economia política da favela.

Por outro lado, talvez a questão mais instigante não seja constatar a existência do dispositivo público-privado (estado e mercado estão juntos há muito tempo), mas o problema de como essa tecnologia se desenvolve em um capitalismo que abandona as políticas do welfare (estado de bem estar social) e tenta organizar a sociedade — diretamente — pelo mercado. Sem dúvida, nesse contexto, teremos políticas que estão bem longe dos projetos fordistas para as favelas (parques proletários, assistência social, inclusão em empregos formais, divisão entre esfera da produção e da reprodução social etc.) e movimentos de luta que, para serem reais, precisam atuar em novas bases, questionando o novo agenciamento.

Qual seria, então, o dispositivo que permite a nova relação entre público e privado, e que também enseja novos conflitos sociais?

Investigar o papel assumido pelas finanças me parece um bom caminho. Segundo o economista Christian Marazzii, elas serviriam de “dispositivo de agregação dos processos de individualização”, um tipo de “comunismo do capital”, em que o capital financeiro passa a ser o representante coletivo dos múltiplos trabalhadores/investidores que fazem parte da “sociedade civil”. Longe do modelo do welfare que, com suas políticas sociais de proteção ao trabalhador, produzia um tipo de inclusão pelo salário sempre correlata a uma possibilidade de representação política (sindicatos, partidos, justiça do trabalho etc.), — no neoliberalismo a própria “financerização define a esfera pública do capital” (Marazzi, C, 2008).

No mesmo ato em que a sociedade liberal dos patrões e trabalhadores industriais é estilhaçada nos delgados investimentos do capital, são criadas as condições para uma “sociedade civil” neoliberal, com o poder de aglutinar os múltiplos fragmentos que se tornam “empresas” (a forma-empresa se generaliza em todas as direções). Isso ocorre, explica Marazzi (2008, p. 58), a partir de dois movimentos: primeiro, com a transformação do trabalhador em investidor financeiro, que se dá com a conversão dos salários, pensões, e direitos sociais em geral em ativos financeiros administrados por bancos, fundos de pensão, fundos de investimento etc. Nessa linha, cada trabalhador passa a ser interessado direto na valorização financeira dos valores recebidos, em razão do trabalho ou dos direitos respectivos. Segundo, a própria possibilidade do trabalhador se manter ocupado, obter um salário-renda e uma inserção no mercado, acompanha o ritmo das oscilações das finanças. Por isso, o default de Eike Batista é mais lamentado pelos pequenos investidores e trabalhadores (que também alimentam os fundos de pensão e bancos públicos de fomento) do que pelos grandes acionistas do mercado (digamos, o novo “patronato”).

As finanças, assim, tendem a incluir diretamente todos os indivíduos em uma nova sociedade (do capital) governada por modulação, fragmentação e flexibilização, na qual “o capital financeiro, enquanto capital social cotado em bolsa, se apresenta como representante coletivo da multidão de sujeitos que povoam a sociedade civil” (idem). O poder financeiro é, portanto, alavancado por um processo contínuo de integração. Público e privado, estado e mercado, aparecem diluídos (mas não confundidos) num poder que opera por uma inclusão sem universalização (crise dos direitos sociais universais) e por uma exploração sem homogeneização (o salário se transforma em renda flexível e incerta). As formas antigas de representação política, por sua vez, não conseguem (ou não querem) representar a miríade de heterogêneos “homens-empresa” que lutam diariamente contra o endividamento e por novos direitos pós-welfare.

Se adentro rapidamente nessa análise sobre o papel das finanças no capitalismo contemporâneo, é para sugerir que a prática e o discurso governamental da “integração entre favela e cidade”, que encontram nas UPPs a sua infantaria, querem pavimentar uma inclusão de novo tipo. A classe C é este pedaço da “sociedade civil” a ser produzida e capturada pelas teias das finanças e do mercado, enquanto o público (estado) pratica as dores da pacificação e o fomento para o novo arranjo.

Voltemos a reportagem do jornal Valor Econômico. Antes dessa notícia vir a público, Eduarda La Roque já tinha escrito um pequeno libelo denominado Rumo ao Fim da Cidade Partida (2012), esboçando várias estratégias políticas, econômicas e sociais que dariam início ao “fim da cidade partida” e o suposto apartheid entre a favela e a cidade. Eduarda, no próprio textoii, se apresenta como uma economista neoliberal, com forte experiência no mercado financeiro, e que decidiu assumir o grande desafio, a partir de 2012, de presidir o órgão de planejamento municipal Instituto Pereira Passos (IPP), a convite do Prefeito Eduardo Paes (La Roque, 2012, p. 195).

A economista aproveita para defender a sua gestão como Secretária de Fazenda do Município, afirmando que, em três anos, a Prefeitura conquistou sustentabilidade fiscal e o aumento, por três vezes consecutivas, do rating de avaliação de risco para investimentos, igualando-se à União. Seria, portanto, a hora de avançar e trabalhar em prol de uma “sustentabilidade social, econômica e ambiental” da cidade do Rio de Janeiro, nunca esquecendo o papel no alinhamento entre as três esferas do poder (federal, estadual e municipal) na “virada histórica” que a cidade estaria vivendo.

Nesse contexto, três elementos seriam fundamentais: a mudança na segurança pública com a chegada das Unidades de Polícia Pacificadoras; a entrada dos serviços públicos nas favelas e a UPP Social, a participação da “sociedade civil” na integração almejada. É justamente nesse último elemento que a economista lança como fundamental o conceito de “Parceria Público-Privada e com o Terceiro Setor”, representada pelo acrônimo “PPP3” (idem, p. 197). A mobilização da “sociedade civil” e um novo arranjo entre público e privado devem caminhar juntos no caminho até a integração.

Eduarda sabe da importância das ONGs para a governança dos territórios pós-welfare, mas parece desconfiar do atual funcionamento desse mecanismo. A economista, nunca fazendo críticas diretas, parece estar atenta à ampla insatisfação com o trabalhos de algumas organizações civis, seja pela baixa qualidade do serviço prestado, seja pela relação problemática com o poder público, determinada, muitas vezes, por critérios de compadrio político, de grupo, ou mesmo familiar. As ONGs precisam funcionar em um novo sistema aberto às dinâmicas do capital gerido financeiramente: elas precisam aderir à forma-empresa e à forma-mercado.

Por isso, a hipótese é que Eduarda, no esteio neoliberal, mira no tipo de “corporativismo” do terceiro setor para guiar as ações por critérios de eficiência, concorrência e profissionalização da gestãoiii. O mercado aqui aparece como dispositivo para “quebrar” relações viciadas estabelecidas entre as organizações e o poder público, com um impacto negativo no território: o capital precisa fluir para produzir sua “esfera pública” e a inclusão da nova sociedade civil. Digamos que as velhas ONGs são vistas como as antigas “corporações de ofício” criticadas por Adam Smith, na emergência da economia clássica. Elas precisam ser desarticuladas para emergir a ONG-empresa aberta às escolhas do mercado.

Assim, a proposta apresentada por Eduarda La Roque para 2014, que pode ser encontrada no texto Inclusão social e o papel do mercado financeiro (2012)iv, pressupõe um controle das atividades do terceiro setor, não pela ideia de patrocínio público de iniciativas privadas (facilmente direcionadas por critérios “fora do mercado”), mas por uma nova interação (neoliberal) entre o estado e o mercado, entre público e privado. Ela tenta introjetar a ideia de gestão, profissionalização e concorrência entre as ONGs, que se tornariam verdadeiros “players” em busca de financiamento em um mercado de ativos sociais e ambientais.

A economista cita os exemplos da Lei Rouanet e da Lei Municipal de Incentivo a Cultura, para defender um amplo repertório de incentivos fiscais que estimularia empresas e proprietários a investir nos fundos socioambientais. O sistema de rating avaliaria o potencial de cada organização civil e o resultado dos projetos realizados, garantindo o controle do investidor. Com a regulação da CVM, surgiria um “novo mercado” e as políticas públicas poderiam ser afetadas pela “agilidade e eficiência do setor privado”. A escolha dos projetos seria realizada de forma parecida como o “market timing” dos ativos financeiros, mas os especialistas seriam outras “ONGs” com o expertise de selecionar projetos promissores.

Chegamos, então, a seguinte conjuntura: (a) se hoje, antes da “reforma La Roque”, as mobilizações sociais multitudinárias e das favelas são “pacificadas”, dentre outros meios mais violentos, por ONGs que, em sua relação com o estado, atuam, muitas vezes, para neutralizar e capturar os conflitos por justiça que emergem, agora (b) esse novo tipo de “representação” será exercido, a partir de 2014, diretamente pelo mercado, que poderá combinar desenhos de “políticas sociais” para os moradores de favela com o lançamento de novos produtos e serviços para os mesmos moradores. No “comunismo do capital” o intermediário (seja ele uma ONG, um sindicato ou um partido) é reduzido a um longa manus do mercado, para a constituição de uma “esfera pública” diretamente governada pelas finanças e pelas planilhas de lucro.

Não estou, nesse texto, lamentando pelo destino de algumas ONGs que, já há algum tempo, são consideradas “vendidas” ou “não confiáveis” por movimentos sociais e de resistência nas favelas. O que me chama a atenção são os novos desafios colocados por esse novo mecanismo que inclui a “Classe C” nas redes do mercado e do endividamento e, ao mesmo tempo, entrega o território da favela às políticas dos “gestores” escolhidos pelo mesmo mercado. Nesse movimento, desaparecem todas as forças de participação social do território, todas as tentativas de se realizar articulações autônomas de moradores e afetados pelas políticas públicas, ou seja, toda a possibilidade de democratizar de alguma forma o processo de “pacificação”. A única mobilização permitida é a do próprio mercado e sua “esfera pública”. Movimentos reais de conflito acabam “atrapalhando os negócios”, como parece ser a própria visão que todos os governos possuem dos recentes embates por direitos ocorridos desde junho de 2013.

O processo de integração: estratégias do estado e do mercado

Continuo pedindo a paciência do leitor para outro dado importante na compreensão das atuais políticas de “integração da favela à cidade”. Elas não se limitam a uma visão local da cidade do Rio de Janeiro, mas também são elaboradas no âmbito da Presidência da República. Em um seminário realizado recentemente, intitulado “Integração da favela à cidade” (maio de 2012), a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República elaborou um texto-basev, cuja premissa é que as favelas estão “desintegradas” da cidade em razão do distanciamento com o “regular”, a prestação de serviços públicos, os padrões “subnormais” urbanísticos, o controle do poder público e a legislação existente (BARROS, R. et al, 2012).

A favela é um campo de atuação para o estado, que deve assumir a agenda da formalização, do poder de polícia e do controle público. E no texto encontramos a seguinte afirmação: “a formalização das atividades nessas comunidades deverá elevar, por sua vez, os custos para empreendedores e usuários de serviços públicos (idem, grifo nosso)”. Ora, a questão do aumento de custos de vida não só é colocada expressamente pelos autores, como naturalizada como um efeito normal, previsível e incontornável. A formalização, operada por intervenções públicas, “deverá” elevar os custos para os moradores e comerciantes da favela.

E como deverá ocorrer o aumento de custo de vida e todo o processo de “integração”? Nesse momento, os autores assumem o caráter unilateral da medida, admitindo que, normalmente, a comunidade não é consultada sobre seu interesse na integração. O leitor que, com razão, desconfie de tamanha sinceridade, pode acessar o documento, onde encontrará a seguinte afirmação: “Como uma mudança imposta, não necessariamente demandada, é natural que se ofereça um período de incentivos para ajuste à nova ordem” (idem, grifo nosso).

A Secretaria de Assuntos Estratégicos propõe, assim, uma “transição escalonada e programada” na qual será oferecido para a comunidade um período de incentivos para “o ajuste à nova ordem”. Portanto, sabedores das possíveis resistências dos habitantes de favelas ao aumento do custo de vida e dos custos nas atividades geradores de renda, os estrategistas propõem uma integração unilateral, sem participação, mas suave. Se em Eduarda La Roque temos a proposta de uma gestão flexível que entrega ao mercado a capacidade de realizar investimentos sociais, aqui a integração unilateral é operada por uma estratégia de imposição sutil e progressiva de uma ordem na qual a participação democrática e comunitária é naturalmente afastada.

Vejamos o texto:

“Integração unilateral – Uma questão a ser enfrentada na integração é precisamente a importância e a adequação de legislação que seja específica para as comunidades, assim como a necessidade de um período de transição para a formalização. Há dois argumentos nesse sentido: (1º) A regularização representa uma profunda mudança nas regras de funcionamento da comunidade. Isso significa mudanças de hábitos e com custos de magnitude significativa na maioria das vezes. Uma das formas de mitigar alguns desses custos e tornar a mudança de hábitos viável é a opção por uma transição escalonada e programada. (2º) A natureza unilateral da integração. Normalmente, a comunidade não é consultada sobre seu interesse na integração. Dessa maneira, presume-se que o interesse coletivo encontra-se acima dos interesses locais. Como uma mudança imposta, não necessariamente demandada, é natural que se ofereça um período e incentivos para ajuste à nova ordem (idem, p. 12).”

Integração unilateral, seja pelo mercado, ou por um estado que, literalmente, trapaceia, tentando suavizar os custos e dissabores da chamada “formalização”. Nesse caso, a democracia desaparece em troca de um genérico “interesse coletivo”, na mesma medida que o possível endividamento dos moradores é assumido como um mal necessário, uma naturalidade inerente ao processo. É preciso abrir a favela à dinâmica dos serviços (todos privatizados, por sinal), na mesma medida em que o poder público garante a “mudança imposta” e propõe uma transição escalonada para dispersar eventuais resistências.

A integração da favela à cidade pela via do mercado aparece também nas pesquisas e conclusões do economista Marcelo Neri. No paper denominado UPP2 e a Economia da Rocinha e do Alemão: Do Choque de Ordem ao de Progresso (2011)vi, o “choque de formalização”, segundo o autor, não levaria somente ao aumento da arrecadação tributária, mas, principalmente, à abertura das favelas ao mercado. A arrecadação de IPTU e dos impostos relacionados às atividades comerciais e de serviço seriam importantes, mas, o fundamental seria, a partir da função primordial do estado em fornecer segurança e o império da Lei, “completar a operação dos mercados”:

“O eixo não é, e não deve ser, levar os favelados ao (cofres do) Estado mas muito mais levar o Estado às favelas e com isso pela função talvez mais primitiva do Estado de prover segurança e o império da lei e com isso (sic) completar a operação dos mercados. É preciso ir além e dar o mercado as comunidades, completando o movimento dos últimos anos quando houve queda da desigualdade entre favela e asfalto, demos os pobres aos mercados (consumidores). (idem, p. 38)

Nessa reflexão, o processo de integração apresenta uma “agenda favorável aos mercados” porque a pacificação não representa custos fiscais adicionais ao setor privado. Além disso, com a presença do estado, seria possível atingir um “ótimo de Pareto”, a partir de uma convergência de elementos vantajosos para o mercado, o estado e os moradores. O “choque de ordem”, necessário para Neri, poderia ser converter também em “choque de progresso”, com ganhos de capital e de bem estar.

Um dos elementos desse processo ocorre porque “o choque de ordem das UPPs cria terreno fértil para o desenvolvimento dos mercados consumidores na base da pirâmide” (idem, p. 39). Segundo Neri, uma “nova classe média” emergirá do reconhecimento do direito de propriedade nesses territórios e que deve ser acompanhado de políticas públicas e regulatórias. Além disso, as UPPs “abrem o mercado desta classe média emergente às empresas de fora que ainda tem o interesse de colocar suas marcas nas favelas por merchandising” (idem, p. 40). O choque de progresso seria o “crescimento vertical” contínuo das favelas no sentido de expandir os limites colocados aos mercados e ao estado.

No livro intitulado O lado brilhante dos pobres (2010), Marcelo Neri e sua equipe traçam uma ampla análise estatística para demonstrar a centralidade da chamada “Classe C” no Brasil, principalmente, a partir do Governo Lula. A “nova classe média” aqui é definida a partir de Thomas Friedman, que no livro O mundo é plano, afirma que a classe média é “aquela que tem um plano bem definido de ascensão social para o futuro” (NERI, M. [Coord]. 2010, p. 26). A definição não é feita ao acaso, o esforço do livro é mostrar que o governo brasileiro, nas pegadas na nova classe média, realiza um caminho de crescimento gradual que o coloca, de forma relativamente segura, imune à crise global que irrompeu em 2008vii.

Vejam que a metáfora do “Choque de Progresso” se aplica perfeitamente à análise realizada sobre a economia brasileira. Aqui vemos um tripé formado pela nova classe média e as virtudes do mercado e do estado. O resultado desta tríade é a perspectiva de anos dourados de crescimento estável e duradouro. Entregar a “nova classe média aos mercados”, afirmar a capacidade do estado em regular a sociedade, garantir a propriedade e realizar políticas públicas de equidade, são fórmulas para garantir esse sucesso (idem). A favela, nesse raciocínio, deve ser incorporada como novo mercado consumidor e nova fronteira de expansão dos mercados. O choque de ordem e de progresso retornam para o imaginário, agora na bandeira de uma suposta convergência virtuosa entre mercado e estado.

Resumindo, então, os discursos apresentados percebemos uma afinidade que define um processo de integração constituído por novos agenciamentos entre público e privado: a) em La Roque as finanças são colocadas como uma nova “esfera pública” que permite investimentos sociais direcionados pelo mercado e executados por ONGs-empresas; b) na Presidência da República a estratégia de formalização é assumida como processo unilateral e escamoteada por mecanismos de transição que teriam como finalidade suavizar o aumento do custo de vida dos moradores; c) em Marcelo Neri o choque de ordem e de formalização são pressupostos para a abertura da favela aos mercados e ao merchandising, conduzidos por um novo protagonismo da Classe C, que deseja gradualmente consumir e ascender socialmente. Esta seria a base para o crescimento do Brasil em geral, e não apenas da favela.

Entre o público e o privado: constituir o comum

 De volta ao livro de Christian Marazzi, o economista afirma que o poder financeiro, ao englobar toda a vida em seu circuito, também precisa enfrentar os “ativos que escapam”. Não estamos mencionando o termo em seu sentido econômico e literal, mas evidenciando que as subjetividades podem adotar rumos inesperados, operar reviravoltas, recusar o destino que estava anteriormente escrito. Não seria esse o fenômeno que irrompeu no Brasil em uma conjuntura que ninguém afirmaria ser favorável às revoltas sociais?

Eis que a Classe C, a nova classe média, aquela na qual Friedman e Neri enxergavam um modelo de segurança e estabilidade, demonstra que pode caminhar por curvas, a contrapelo, e não apenas por linhas retas. E o Rio de Janeiro, que era o laboratório reluzente dos novos arranjos entre público e privado, a nova cidade-empresa, se constitui como cidade insurgente, onde todos os ativos parecem escapar, desafiando ao mesmo tempo o poder público que impõe a ordem e o poder privado que governa com base na propriedade.

O que caracteriza os novos movimentos na era de uma “esfera pública do capital”? Ora, se a nova “sociedade civil” é composta por multiplicidades heterogêneas governadas imediatamente pelos fluxos das finanças e do mercado, o mesmo se dá com a composição das formas de resistência. Aquelas velhas categorias homogêneas que lutavam no horizonte do fordismo, agora ou se derramam em novos modos de subjetivação, ou precisam se articular com eles para constituir um movimento real de lutas. No movimento dos professores, por exemplo, o momento de maior potência foi, sem dúvida, sua articulação com os jovens precários que já estavam nas ruas realizando uma greve urbana de novo tipo. E o momento mais enfraquecedor ocorreu quando o sindicato voltou a operar com base na representação de política e na disciplina.

No mesmo sentido, os movimentos de moradia e das favelas devem procurar  atravessamentos semelhantes e aberturas à multiplicidade. A campanha pela verdade no caso Amarildo foi uma experiência talvez única desse tipo de experimentação. Um movimento que se espalhou por toda a cidade articulando diferentes sujeitos, perspectivas, mundos e pontos de partida. Nesse horizonte, a luta por Amarildo questionou o funcionamento das UPPs não com base em argumentos de estado ou de mercado, não por representações políticas ou por ONGs formalizadas, mas a partir da constituição de um terreno comum, que é a própria possibilidade de entrelaçar paz e democracia em um sentido material (real).

Com o lançamento do programa de Fundos de Investimentos e Participações em UPPs, para 2014, a disputa para estilhaçar a “esfera pública do capital” em uma partitura comum dos movimentos e mobilizações deverá se acentuar. Está claro que é esse o único campo possível para que a integração da cidade, a partir de suas singularidades, ocorra de baixo para cima, como constituição do comum, e não como choque de ordem (público) e captura financeira (privada). Essas duas linhas sobre a “pacificação” já estão colocadas. A primeira aponta para uma democracia real, produzida na multiplicidade e numa permanente abertura, a segunda, ninguém mais tem dúvida, reatualiza a ditadura por outros meios.

Alexandre Mendes, doutor em direito pela UERJ, é professor da PUC e participa da rede Universidade Nômade.

NOTAS

i Cf. MARAZZI, C. Il comunismo del capitale Finanziarizzazione, biopolitiche del lavoro e crisi globale, 2008.

ii Cf. LA ROQUE, E. Rumo ao fim da cidade partida. In: REIS VELLOSO, J.P. [Org]. Desenvolvimento Humano, “Indústrias Criativas”, favelas e “Os Estatutos do Homem” (Ode ao amor, à vida e à liberdade). Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

iii Devo esta hipótese a uma comunicação oral realizada pelo Prof. Giuseppe Cocco (UFRJ) em reunião que estive presente com as pesquisadoras da PUC-RJ Andrea Mello e Noelle Resende,  ocorrida no início de agosto de 2013.

iv LA ROQUE, E; BOAVISTA, S.M.J. Inclusão social e o papel do mercado financeiro. Revista RI, outubro, 2012. Disponível em: http://ipprio.rio.rj.gov.br/wp-content/uploads/2012/10/RI-167-SUSTENTABILIDADE-por-Eduarda-La-Rocque-e-Jos%C3%A9-Marcelo-Boavista-1.pdf. Acesso em 27 de junho de 2013.

v O texto pode ser encontrado em: http://www.sae.gov.br/site/?p=11914 Acesso em 27 de junho de 2013

vi Cf. NERI, Marcelo [Coord]. O lado brilhante dos pobres. Rio de Janeiro: FGV/CPS, 2010.; NERY, M. UPP2 e a Economia da Rocinha e do Alemão: do Choque de Ordem ao de Progresso. Rio de Janeiro: FGV/CPS, 2011.

vii A relação entre a emergência de uma nova composição de classe e sua exploração por novas formas de capitalismo cognitivo no contexto da integração das favelas é comentada por Giuseppe Cocco em entrevista à Revista Online do IHU, edição de 10 de março de 2011. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/40363-o-complexo-do-alemao-e-as-mudancas-na-relacao-entre-capitalismo-mafioso-e-capitalismo-cognitivo-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco. Acesso em 29 agosto de 2013.

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