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Grécia x Troika: o referendo e a democracia

Por Costas Douzinas, no openDemocracy, 27/6 | Trad. UniNômade

GREEK

Um homem visita o consulado australiano em Atenas e pede um visto de trabalho. “Por que você quer sair da Grécia?”, pergunta o funcionário. “Estou preocupado que a Grécia vá sair do euro”, responde o homem. “Não se preocupe”, responde o cônsul, “Eu estava falando com o meu colega alemão ontem e ele garantiu que a Grécia vai ficar no euro.” “Esse é o segundo motivo por que eu quero sair.”

A história mostra o dilema impossível dos gregos. Por um lado, a continuação da catastrófica austeridade que destruiu o país. Do outro, Grexit, a saída do país da zona do euro, com a perspectiva de ser comprometidos, por um período imprevisivelmente longo, os padrões de vida das pessoas que viram os seus salários serem cortados pela metade. O anúncio do premiê Alexis Tsipras, da Syriza, no domingo passado, que as pessoas serão perguntadas em referendo sobre a proposta final dos europeus e do FMI à Grécia, é uma tentativa de desviar a atenção da típica aporia (falta de passagem) para uma questão mais governável: as pessoas respaldam a rejeição dos piores efeitos da austeridade pelo governo da Syriza ao mesmo tempo que aceitam o seu compromisso em manter o país na zona do euro? Os riscos aqui são altos: além do destino da Grécia, está em jogo o futuro da União Europeia e da democracia.

O contexto imediato do referendo é o comportamento dos parceiros europeus nos últimos anos. O governo da Syriza foi eleito com um mandato claro para pôr fim às políticas de austeridade. Essas políticas têm sido conduzidas mediante duas frentes: austeridade fiscal e recessão interna. A austeridade fiscal tem sido perseguida por meio da redução do gasto público, a privatização de recursos estatais chave e o aumento de taxas e impostos. Um grande número de funcionários públicos foi demitido, serviços sociais foram cortados, em particular, o serviço de saúde não é mais capaz de atender a necessidades básicas. A crise humanitária que se seguiu está bem documentada e não faz sentido aqui detalhá-la mais uma vez. A lógica dos credores está voltada a gerar superávit primário no orçamento, que a seu passo não seria usado para reativar a economia estagnada, mas para pagar as dívidas crescentes. Os governos anteriores tinham aceitado a obrigação de gerar superávits anuais de mais de 5% do PIB nos próximos sete anos, algo que nenhum governo desde Ceausescu na Romênia tentou ou conseguiu.

A recessão interna foi conduzida através da redução sucessiva de salários do setor privado e da abolição do bojo das leis e direitos trabalhistas, tal como o dissídio coletivo. Ao mesmo tempo, o repetido aumento de impostos, inclusive com uma taxa regressiva sobre a propriedade fundiária, levou o sangramento da economia a níveis sem precedentes. Para o FMI, o empobrecimento dos trabalhadores significaria aumento da competitividade, ajudando no crescimento econômico. Mas o resultado foi um fracasso total. A economia encolheu em 26%, o desemprego pulou para 27%, o desemprego entre os jovens a mais de 60% e mais de 3 milhões de pessoas caíram da linha da pobreza. O FMI admitiu um par de anos atrás que havia subestimado os efeitos adversos da austeridade na economia — o dito “multiplicador fiscal” — por um fator de três.

Um golpe europeu

É sobre esse pano de fundo que os gregos elegeram, em janeiro de 2015, o governo da Syriza, comprometido a reverter essas políticas. Seguiu-se um período de negociações. Mas não foram propriamente negociações. A imensa lacuna entre as duas partes em termos de recursos e de ideologia tornou as conversas brutalmente assimétricas. Eu chamei essas “negociações” de golpe europeu, uma tentativa de mudança de regime, mas usando bancos e não tanques. Os riscos econômicos para os credores da Grécia são relativamente pequenos — a economia grega responde por somente 2% do PIB europeu — e não justificam o rompimento de relações. O princípio cautelar da teoria do risco, inscrito no DNA europeu, exige que os efeitos imprevisíveis do Grexit sobre a economia europeia e global sejam evitados. Se o colapso do Lehman brothers já tinha criado tão enorme crise, até mesmo a simples consideração do Grexit pode ser mais perigosa.

A ameaça sentida de um sucesso da Syriza e de uma redução da dívida grega, seguidamente declarada inviável pelo FMI, é política e não econômica. As elites europeias temem o contágio ao longo do sul da Europa de uma instância anti-austeridade surgida entre o povo e o governo grego. O resultado das eleições municipais espanholas, o voto anti-austeridade na Escócia e os resultados das pesquisas de opinião sobre o Sinn Féin indicam que as pessoas atingidas pela austeridade começaram a se mexer. O governo da Syriza está liderando o ataque contra o mantra neoliberal de que “não há alternativa”. Mesmo um sucesso limitado mostraria que a única luta que não pode ser vencida é a luta não assumida.

O medo do contágio político é a única interpretação crível das ações da União Europeia e do FMI. O objetivo está claro. Ou a derrubada do governo de Tsipras, se ele não aceitar as onerosas condições impostas, ou humilhá-lo a tal ponto que se torne impossível manter partido e governo juntos. Existem muitas indicações da tentativa de golpe. Cada vez que o governo grego apresentou aos líderes europeus uma proposta política resolvendo o problema de longo prazo da sustentabilidade da dívida, ele foi orientado a ir aos tecnocratas e calcular os custos envolvidos. Quando os gregos voltavam com cálculos detalhados, os emprestadores insistiam numa desvalorização interna como condição de viabilidade para a redução da dívida. Os europeus são sensíveis ao regime democrático, mas totalmente insensíveis em renegociar as dívidas. Presos entre a Cila de uma dívida permanentemente crescente na medida em que os empréstimos são usados para pagar a dívida anterior, e a Caríbdis da austeridade galopante, a Syriza esgotou os caminhos da negociação.

As jogadas do fim do jogo são características do impasse. Na quinta-feira, 18 de junho, quando o premiê Tsipras estava na Rússia, a Reuters noticiou o vazamento, por um membro da direção do Banco Central Europeu, que as agências de rua poderiam não abrir na segunda-feira seguinte. Foi o sinal claro para que as pessoas sacassem as suas poupanças na mesma sexta-feira, um alerta autorrealizado que aliás até poderia ser considerado um crime. Quando a notícia explodiu, eu estava jantando com alguns membros antigos da Syriza em Atenas e fiquei surpreso e maravilhado pela reação calma e relaxada deles. Decidiram não dar muita atenção ao vazamento e responder aos ataques seguintes. Houve uma corrida aos bancos na manhã de sexta e, embora num único dia os saques tenham sido maiores do que no resto da semana, nenhuma ameaça ao sistema bancário realmente se verificou.

Em 25 de junho, a Grécia apresentou um novo conjunto de propostas inteiramente calculadas. Elas foram um grande recuo em relação ao manifesto da Syriza. Elas avançaram por um longo caminho na direção da posição dos credores, aceitando as demandas fiscais de cortar o gasto público e aumentar impostos, até um total de  7,9 bilhões. Por outro lado, o novo fardo foi distribuído de uma maneira mais justa. 70% dos novos impostos foram colocados nos ombros da parte mais rica da sociedade, ao se aumentar a carga tributária sobre as empresas de 26% para 29%, além de impor uma taxa one-off de 12% sobre empresas com lucros acima de meio milhão. Pela primeira vez, as propostas foram bem vindas pelos credores, que declararam que iriam constituir a base do acordo. Mas imediatamente depois, os credores rejeitaram globalmente o que apenas algumas horas antes tinha sido considerado base do acordo. Quatro dias antes do final do período de validade do atual programa financeiro, os credores aumentaram o valor a ser sangrado da economia grega para mais de 11 bilhões, assim como inverteram a lógica da proposta ao impor um caminhão de novas demandas à parte mais pobre da sociedade.

O negócio foi apresentado como uma proposta do tipo “pegar ou largar”. A sra. Merkel chamou-a “generosa”, enquanto o sr. Donald Tusk, presidente  do Conselho Europeu, disse: “o jogo terminou”. Tornou-se claro que as “negociações” iriam concluir apenas se o governo aceitasse a chantagem e abandonasse de vez a ideologia prometida aos eleitores e a esperança criada aos povos grego e europeu. Nesse contexto, Tsipras convocou o referendo pedindo às pessoas para decidir se deveriam aceitar a posição dos credores.

O tango estagnado entre democracia e capitalismo

O compromisso do segundo pós-guerra entre capitalismo e democracia se mostrou em seu modo mais autoritário na fundação da União Europeia. Capitalismo e democracia operam princípios diferentes de distribuição da produção social. Como Wolfgang Streeck coloca em seu livro Buying time, na justiça legal ou dos mercados, a distribuição é conduzida de acordo com decisões de mercado e dos direitos de propriedade, incluindo aqui obrigações de dívida, e é expressa em preços. Aqueles que falham no mercado se tornam alvos de filantropia e, se resistirem, repressão policial. Justiça social, por outro lado, é determinada por normas culturais e ideias coletivas de justiça, equidade e solidariedade. Ela assegura que todos desfrutem, independente do desempenho econômico ou da produtividade, de um mínimo de padrão de vida e reconhecimento dos direitos civis e humanos. A justiça social é expressa em decisões de instituições formais e informais, inclusive nas eleições. Ela age como um corretivo do sistema de distribuição do mercado.

A Syriza deixou claro que o futuro da Grécia está na zona do euro e na União Europeia. A posição negocial do governo, munido do recente mandato eleitoral, foi uma tentativa desesperada de salvaguardar a coabitação entre democracia e capitalismo, a despeito da hostilidade do neoliberalismo contra as eleições, as pessoas e suas decisões. O capitalismo tardio depende da neutralização da democracia. Tecnocratas decidem todas as principais decisões políticas, enquanto os banqueiros e o capital financeiro parecem ser um único grupo de interesses lutando com as pessoas por recursos escassos.

A proposta grega pode mudar a paisagem política. O referendo é uma palavra suja nos corredores de Bruxelas. As elites têm ficado traumatizadas ante os rechaços populares na França, Holanda, Irlanda e Polônia, entre outras, e cancelaram a proposta de Papandreou de realizar um referendo em 2012. As elites europeias, que se sentem inexpugnáveis desde 1989, pressentem a raiva popular, mas não a conseguem compreender. A proposta de Tsipras traz de volta o medo que as elites sentem quando as pessoas momentaneamente ingressam num estado político. O referendo é encontro marcado com a resistência anti-austeridade dos gregos e em direto contato com a ocupação da Praça Syntagma, em 2011. Ele coloca as pessoas no centro da política e prefigura um quadro institucional em que a democracia direta se torna um suplemento permanente à sua fração representativa.

Um extraordinário experimento em democracia direta tomou lugar na Praça Syntagma e muitas outras praças do mundo. A multidão de Syntagma tanto imitou quanto subverteu o princípio da representação e organização estatal. Nas assembleias diárias e numa sofisticada rede de grupos de trabalho, Syntagma ofereceu um microcosmo para um futuro estado democrático operando sob o axioma estrito da igualdade. A multidão de Syntagma não era uma população vitimizada e sofredora. Era um povo ativo e criativo realizando a democracia direta e tomando seu destino nas próprias mãos. Depois de Syntagma, estavam desenhadas a vitória da Syriza e a mudança radical da política grega.

O referendo leva a lição das praças ao coração da política. As pessoas são chamadas a decidir diretamente sobre o seu futuro. A Syriza e a oposição grega serão julgadas nos próximos dias. Num debate no Guardian, na última quarta-feira, e em várias entrevistas, fui perguntado se “a Grécia poderia ser salva.” A ansiedade das notícias dá a impressão de um apocalipse iminente. Pode ser útil às mídias, mas não tem nada a ver com a realidade. O sol vai nascer novamente sobre a Acrópole amanhã, e a coruja de Atena vai voar no pôr do sol como Hegel escreveu. Apesar dos profetas do apocalipse, as pessoas permanecem calmas, estoicas, ciosas do significado do momento histórico. A longevidade dos helenos é bem maior do que da maioria dos incrédulos.

Mas o referendo também põe as elites europeias diante de um grande dilema: elas respeitarão as decisões democráticas do povo, ou serão as demandas de bancos, financistas e seus amigos na política e na mídia o mandamento sagrado da nova Europa? O povo grego deu à União Europeia a chance de reafirmar o seu compromisso com os valores do Iluminismo — igualdade, liberdade, solidariedade — e os princípios de sua própria fundação. De uma maneira estranha, o lugar onde a democracia nasceu nos dá a chance de novamente, no século 21, nos comprometermos com os seus ideais.

 

Costas Douzinas é professor de direito e diretor do Instituto Birkbeck, em Londres. Colabora com The Guardian e seu último livro Philosophy and Resistance in the Crisis (Polity) foi lançado em 2013.
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