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“Misturar-se de uma vez para sempre”: o processo antropofágico

Versão escrita da fala de Murilo Duarte Costa Corrêa ao seminário “A ascensão selvagem da classe sem nome: tatu or not tatu”, na Casa de Rui Barbosa, em 6 de setembro de 2012.

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[…] pensamento selvagem não é (…) o pensamento dos selvagens, nem aquele de uma humanidade primitiva e arcaica, mas o pensamento em estado selvagem, distinto do pensamento cultivado ou domesticado em vista de obter um rendimento”. (Lévi-Strauss, 1962: 289)

0 Iniciais

 

Gilles Deleuze (1998: 137) dizia que, ao escrever sobre um autor, perseguia o ideal de “não escrever nada que pudesse afetá-lo de tristeza”, ou, se ele estivese morto, que o fizesse “chorar em sua tumba”. Seria preciso pensar em um autor de modo tão forte que ele já não pudesse ser nem um objeto (armadilha da erudição), nem mesmo um sujeito (engodo demasiado familiar). Antes, trata-se de “Levar a um autor um pouco da alegria, da força, da vida amorosa e política que ele soube dar” e, nisso, corre-se sempre o risco de não agradar a ninguém.

É no interior dessa ética espinosana de Deleuze que confesso que “Biopolítica e Antropofagia” é, para mim, uma aventura em território selvagem. De todo modo, assim como alguém disse que só é possível pensar na ponta mais extrema de nossa ignorância, é preciso colocar imediatamente as duas questões que se articulam em minha intervenção.

Minha primeira preocupação é cartográfica: tentar determinar brevemente “o que está em questão na biopolítica”. Minha segunda preocupação é ético-política e se resume em perguntar sobre o processo antropofágico: “como?”. Nessa última pergunta, está implicado o processo antropofágico, apreendido a partir de suas relações com a biopolítica, mas também sua componente terminal ética: “como ou não como?”. Sua conjugação deve levar-nos a compreender o processo antropofágico como campo de subjetivação biopolítica.

 

1 Biopolítica

Sobre o dorso de Foucault, Negri (2008: 43) reformula a ideia de biopolítica a partir de uma distinção que, estendendo uma intuição1 presente já no primeiro volume da História da Sexualidade foucaultiana, identifica o conceito com a potência de um corpo biopolítico coletivo que constitui a verdadeira dimensão positiva e produtiva que o Império vampiriza, tenta modular e controlar. O Império, inimigo multiforme e imanente, assinala o negativo que organiza, despotencializa e expropria as intensidades que encontram sua fonte absoluta de produção na potente vitalidade da multidão (Pelbart: 2003, 84-85). Resumida a polarizações, trata-se da dinâmica da multidão contra a organização imanente do Império, da biopolítica contra o biopoder, da biopotência contra o poder sobre a vida, da potência da produção social do biōs contra seu sequestro pelo biopoder.

Biopolítica e biopoder são coextensivos ao passo em que ambos investem a totalidade da vida social. O segundo, contudo, constitui o princípio transcendente de organização das formas de vida; a primeira, imanente à sociedade, designa uma potência produtiva de variação das formas de vida (Negri; Hardt, 2005: 135).

Assim como a vida é investida por dois flancos – poderes e contrapoderes –, a subjetividade deixa-se investir pelo biopoder ao mesmo tempo em que investe contra ele, como resistência biopolítica. Da mesma forma que, para Foucault, o poder é um campo de poderes, de relações de poderes (Negri, 2008: 40), o sujeito é produzido em cointensivamente a arranjos heterogêneos de poder e potência, e pode definir-se como um campo variável de forças que recebe múltiplas correntes de subjetivação e dessubjetivação das quais se investe e com as quais se conforma (Agamben, 2008: 148-149). Não há forma de vida, ou subjetividade, que não sejam definidas como um composto de relações de forças (Deleuze, 1984: 131).

Há, portanto, uma relação entre estratégias de sujeição e produção de formas de vida. Nessse sentido, seria conveniente lembrar a raiz etimológica comum a “sujeito” e “súdito”, derivadas do latim “subjicio”. Na Roma do século I a.C., o termo designará tanto “assujeitar, submeter” quanto “pôr aos pés de”, no sentido de “trazer para perto de”, assinalando uma relação de vizinhança.2

2 Forma de vida: a imanência do inimigo

Ao nos apoderarmos dos dois sentidos de “subjicio”, compreendemos que no poder tudo é relação de vizinhança, imanência do inimigo, biopolítica e resistência no campo da morte imposta, da vida gerida ou da energia vampirizada. Há sempre uma limitação da vida por sua organização em formas; em relação a ela, estrutura-se sempre uma resistência à organização que passa pela prova atlética de um excesso de vitalidade.

Eis o que está no centro da biopolítica: a vida em imanência absoluta, em seus agenciamentos complexos com as forças, seus arranjos, suas composições. Sua relação de vizinhança e imanência às forças assinalam que toda vida sempre pode estar sujeita às injunções do negativo; isto é, uma vida nunca está completamente a salvo de ser organizada como objeto de poder e sujeição, como recentemente mostraram as pesquisas de Agamben sobre a vida nua. Nesse caso, a operação biopolítica, seguirá uma polaridade tão negativa que aparecerá convertida em tanatopolítica, uma vez que, segundo Agamben, o biōs (a forma política de vida) é produzido como resultado da operação soberana da exceção, que mantém uma relação com a zoē (vida definida como puro fato, sem qualquer qualidade) exclusivamente na medida em que a captura na exterioridade, sob a forma de uma relação com o irrelato.

O poder assenta-se e exerce-se circunscrevendo a disjunção metafísica e prática produzida entre biōs e zoē – desarticulação produzida pela máquina antropológica do Ocidente (Agamben, 2002: 42). No terreno da soberania política, a operação da exceção produz uma forma de vida impotente, negativa, separada daquilo que ela pode. Por essa razão, a única saída que Agamben encontra é projetar em direção à política e à filosofia que vem o desafio de engendrar uma vida definida por sua potência que, sendo absolutamente imanente à sua forma, já não permita isolar, em seu interior, algo como uma vida nua (Agamben, 1996: 13-14) – projeto destinado ao último e adiado volume de Homo Sacer.

Em algumas páginas luminosas, Antonio Negri (2008: 51), Giuseppe Cocco (2009: 176-177) e Peter Pál Pelbart (2003: 67) apontaram a negatividade aporética do conceito de vida nua. Nelas, destacava-se ora que o poder soberano e a exceção apenas se representam como absolutos, sem efetivamente o serem, ora que o que soçobra, no fundo da ideia de vida nua, é uma ontologia negativa de filiação heideggeriana, incapaz de produzir diferença.3

Gostaria, no entanto, de, apoiando-me em seus textos, desenvolver uma outra hipótese – que arrisca conduzir-nos outra vez ao magma confuso do conceito foucaultiano de biopolítica, que Negri se esforçara por distinguir; no entanto, não enxergo outra possibilidade de pensar a vida na imanência.

A biopolítica é uma operação de poder/resistência que produz uma forma de vida ao mesmo tempo em que faz desse estado de organização e estase seu inimigo. Subjetivação/Sujeição são duas faces inscritas na mesma forma: a sujeição age separando uma forma de sua potência de variação; a subjetivação, reunindo-a a ela. Eis o que daria a compreender que o pensamento de Agamben permanece suspenso e indecidível entre as duas faces da forma de vida, de modo que a vida nua é a vida como mero fato, não como potência; designa o momento em que uma forma de vida encontra-se separada das potências da vida por uma operação de poder, biōs sem zoē, atual puro, sem virtual, transcendência absoluta (Corrêa, 2009: 65-72).

O argumento original de Negri auxilia a compreender a aporia a que Agamben se rende. Assim como a operação da exceção soberana representa-se como absoluta no campo do poder, a vida nua representa-se como forma de vida puramente atual. Se Cocco insiste que toda vida nua é, sempre e já, vida vestida – pois há uma potência informal em toda forma de vida – genealogicamente, é o Deleuze de O atual e o virtual quem afirma que “Não há objeto puramente atual. Todo atual se envolve em uma névoa de imagens virtuais” (Deleuze, 1998: 173).

Mais que uma pura atualidade, a vida nua designa antes uma parada no processo de variação biopolítica das formas de vida, ou sua continuação ao infinito. O “dar forma à vida de um povo” como operação capaz de reduzir a vida à sua forma converte a biopolítica em tanatopolítica e faz da vida nua, produzida pelos dispositivos tanatopolíticos, uma imagem cristal, que, no vocabulário de Deleuze, designa o menor círculo possível entre as imagens atual e virtual.

A estratégia do biopoder passa por produzir esse infinito girar no vazio: trata-se sempre de soldar e voltar a soldar a repetição virtual a certa forma domesmo por meio da representação e da identidade de uma forma atual. Isso vem encontrar uma intuição de Maurizio Lazzarato (2005: 69) que aponta que o que é enclausurado é sempre o Fora; isto é, “o virtual, a potência de transformação, o devir”.

No instante em que produção de sujeição e de subjetividade parecem fungíveis, Negri (2008: 48-51) insiste que a produção de subjetividade faz corpo com um tecido múltiplo de relações de poder sempre e já atravessado por um profundo desejo de vida. Esse desejo de vida é o lugar de emergência da resistência ao poder – resistência que constitui verdadeira instância de produção de subjetividade, produzindo-se como excesso intensivo, incomensurável, irredutível. Mesmo no epicentro aparentemente imóvel do cristal, no interior do “sistema mais fechado”, dizem Deleuze e Guattari (2007: 159) “tem ainda um fio que sobe até o virtual, e de onde desce a aranha”. A questão é sempre a “de saber se o potencial pode ser recriado no atual”, a questão é a seleção dos estados de coisas, das coisas e dos corpos pela sua potência.

A resistência biopolítica coincide com um potencial de produzir e consumir rupturas intensivas, restos não-metabolizáveis pelo biopoder ou pelo estado de exceção, que não passa de uma armadilha segundo a qual um poder se representa como absoluto, sem poder, ontologicamente, jamais sê-lo.

Tanto a saída de Negri, como a de Deleuze, são êxodos da representação pelo virtual, sem abandonar a imanência do inimigo – e o inimigo são “as organizações de formas, as formações de sujeitos [que] tornam o desejo ‘impotente’”, dirá Deleuze (1998: 112). As operações de biopoder produzem sujeitos, engendram organizações de formas de vida, por meio de paradas nos processos de subjetivação; a biopolítica, pelo contrário, tende à efetução da subjetivação, não à parada do processo, nem à sua continuação ao infinito.

É nesse sentido, o de um processo que tende à sua efetução, que chegamos à derradeira articulação: antropofagia e variação biopolítica. Esse pressuposto deve bastar para afastar toda ideia de mestiçagem conciliadora e homogênea freyreanas, que não passam de estases do biopoder nais quais se troca a caldeagem pelo caldo (Cocco, 2009: 260) e se busca obturar a diferença no mulado cordial e sem espessura que fixaria o brasileiro como nova raça, como povo homogêneo e reconciliado consigo.

Se assim fosse, não se poderia falar em processo antropofágico, afastado de toda teleologia, de toda antalogia verde-amarelista. Seguindo o conselho de Deleuze, é preciso não escrever nada que entristeça Oswald. Quero é dar um pouco de alegria a seu dom. Por isso, começo por um nome próprio, pela operação da personagem conceitual que, de um só golpe, a faz fugir por um agenciamento de enunciação coletiva e nos permite aproximar-nos de seu plano de imanência. Parecerá que começo pelas iniciais, mas começo pelo meio.

3 O processo antropofágico: como?

Oswald de Andrade, iniciais: um O, um A, intercalados por pontuações. Nas máquinas de escrever – objetos arcaicos, que Oswald usava – engendrava-se o 0 com o O; assim como tudo, na natureza ou na cultura (essa clivagem artificial), é engendrado a partir de uma intensidade zero. O A inaugura o primeiro termo da série. O ponto marca sua precipitação. Um certo advento, um início intervalar, intermezzo entre 0 e seu porvir. Depois do 0, da intensidade = 0, o A. Primeira letra do alfabeto. Entrada na linguagem. Nome de família. Nome-do-Pai. Registro extenso de filição. E, então, o retorno, a repetição: um ponto. Mas o mesmo ponto? Impossível dizer. Afirmada, toda pontuação, todo intervalo, todo entretempo são misturas intensivas: mesmo e já outro, depois do qual o nome já não aceita mais falar. Nem por isso 0.A. é um código binário. É, antes, a assinatura de uma singularidade com a qual é preciso agenciar um pouco. Sua derradeira pontuação, que parece interromper a série, é o índice de uma positividade diferencial que excede a pessoa e o nome. Uma assinatura, índice do nome próprio que não designa nada de pessoal. Agenciamento coletivo de enunciação, língua menor que cria um povo antropófago que ainda não existe.

A antropofagia joga os índios para o ecúmeno e para o futuro (Viveiros de Castro, 2009: 168), assumindo o que Deleuze (2003: 302) julgava ser a potência política da estética: resistir à morte – luta imemorial e, ao mesmo tempo, contemporânea dos índios – e inventar um povo que ainda não existe.

Oswald faz mais do que isso. Sua literatura e crítica inventaram uma nova forma de liberdade. O Brasil pré-oswaldiano é o Brasil binarista: ora o Brasil do particularismo nacionalista e xenófobo, digno de Oliveira Vianna (1939: 11; 1999: 155), ora o do universalismo colonialista letrado que sempre coube nas descrições de Antônio Cândido (2006: 117-126)4. Antes de Oswald só havia a opção pela raiz ou pelo caule. Oswald deu-nos o rizoma: a antropofagia é uma irredutível teoria das multiplicidades (Cocco, 2009: 236).

O gesto antropofágico está mais perto das potências vitais da alma selvagem que de uma lógica de permuta ou constituição das identidades: “a identificação”, diz Clastres (2011: 238) “é um movimento para a morte, o ser social primitivo é uma afirmação da vida”; “A lógica das sociedades selvagens é uma lógica do centrífugo, uma lógica do múltiplo. Os selvagens querem a multiplicação do múltiplo” (Idem, ibidem: 248). Eis a efetução à qual tende toda operação antropofágica.

Eis o que está em jogo no primitivismo de Oswald: nada de particularismos, retornos, escatologias naïves ou essencialismos. Nada de “triste xenofobia”, nada de “macumba para turistas” (Andrade, 2004: 164) ou de culturas arborescentes que, possuindo um eixo genético, procedem por ramos. Nada, também, de universalismos vestidos, mas o gesto incendiário: “precisamos saltar do bonde, precisamos queimar o bonde [da civilização]. A Europa atualista nos ajudará. […] Comeremos todos os emboabas” (Andrade, 2009: 62).

A operação antropofágica implica uma verdadeira filosofia prática que é, ao mesmo tempo, metafísica, estética e política. Crítica da Razão Prática feita de um só imperativo categórico: “Só me interessa o que não é meu. Única lei do mundo” (Andrade, 1990: 47). “Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade” (Andrade, 1990: 51).

A antropofagia, todavia, não nos salva. É uma operação antimessiânica; indica o campo de imanência, constitui apenas o terreno da luta (Cocco, 2009: 225). Assim como a vida está sempre entregue à criação e variação de formas biopolíticas ou à sujeição pelo biopoder, assim como o desejo pode constituir uma linha de ruptura, mas também pode precipitar-se no fascismo do desejo capaz de arder pelo próprio aniquilamento (Deleuze; Guattari, 2008 : 26; Idem, 2010 : 48) – a hibridização não basta. Ela está sempre sujeita ao risco de segmentar-se no retorno do racismo, só que agora híbrido, sob a estranha forma de um racismo mulato; há sempre o risco de se decretar o retorno do imperialismo do “novo” homogêneo.

Na imanência do inimigo, trata-se de fazer com o emboaba como fazemos com as proteínas no nível do organismo: deglutí-las, quebrá-las em unidades menores, assimilá-las à nossa própria estrutura orgânica; isto é, sintetizá-las autenticamente, diferencialmente; para dizê-lo no plano do sujeito: ao modo da nossa singularidade.

A antropofagia implica toda uma economia libidinal, todo um comércio dos corpos. Alegre triunfo da multiplicidade. Consumir o corpo do Outro não é um ato apenas espiritual e sacro; também é uma operação ontológica e física. Consumir o corpo do Outro consiste em reunir à composição de forças que designa a regição de variações do nosso próprio corpo a potência específica, o sistema de afetos possíveis, os arranjos e as variações singulazintes de um corpo não-familiar e inumano.

No limite, o consumo do corpo do outro implica também um ato espiritual. Se Leibniz estiver certo ao afirmar que “o ponto de vista está no corpo” (apud Deleuze, 1988: 16), a operação antropofágica reúne ao ponto de vista de nosso corpo ou ponto de vista do Outro e, com ele, reúne as multiplicidades de mundos possíveis que esse corpo exprime ou que constituem expressões desse corpo, por meio de seu ponto de vista. Como quisera Deleuze (1988: 16), “tudo se faz maquinicamente no corpo, segundo forças plásticas que são materiais”.

A operação metafísica da antropofagia de “transformar o tabu em totem” assume ao menos dois significado para Oswald: 1º) converter o valor oposto em valor favorável; deixá-lo encontrar com nosso corpo, compor com suas forças, reuní-las em um si impessoal; 2º) profanar ou desterritorializar o limite, o intocável, implicados no tabu (Andrade, 1990, 101). Produzir uma zona de indeterminação entre o si e o outro, na imanência do outro; trocar de lugar com ele; perspectivar-se desse ponto de vista estrangeiro (Viveiros de Castro, 2011: 281)5; fazer uma forma de vida – estase demasiado atual – encontrar a potência do virtual, o fio por onde desce a aranha, trocar incessantemente com o virtual, rachar os cristais.

Como quisera Bergson, a alegria é a prova de que a vida venceu. Para Oswald, “A alegria é a prova dos nove” (1990: 51) porque não há banquete antropofágico que não seja, já, um bom encontro, que não implique uma operação ontológica de liberdade, que permita ver o fundo dionisíaco do ser: a vida como “devoração pura”.

No seio das relações apolíneo-dionisíacas, e despido de qualquer tristeza, Oswald advertia em A crise da filosofia messiânica que “O homem é o animal que vive entre dois grandes brinquedos – o Amor onde ganha, a Morte onde perde. Por isso, inventou as artes plásticas, a poesia, a dança, a música, o teatro, o circo e, enfim, o cinema” (Andrade, 1990: 144). Repito-o para que tenhamos presentes duas coisas: 1ª) no seio da operação antropofágica, a política é uma estética continuada por outros meios, mas a estética é, também, uma política; 2ª) A antropofagia, a hibridização, na imanência do inimigo que capturam e absorvem para compor, por esse processo, a diferença, jogam com vida, com suas linhas de abolição e de ruptura.

Por essa razão, biopolítica e antropofagia – operações antimessiânicas por excelência que se cruzam na ontologia a todo instante – exigem uma ascese deleuziana: é preciso saber que uma linha de fuga, um corpo sem órgãos, ou um hibridismo, não bastam; para limar, furar, atravessar o muro branco, para rachar um cristal, ou dissolver uma forma, é preciso usar a fina lima da prudência. No seio do tecido e das variações biopolíticas, a antropofagia parece antecipar um reencontro com o cuidado de si e a estética da existência. Mesmos ou outros, já é possível escutar seu murmúrio. É preciso inventar o mundo na dobra de si. É preciso viver o si como a dobra do mundo.

4 Alguns modos concretos para comer um emboaba

na política ou na cultura6

(Fig. 1, América, de autor desconhecido)

1º Modo de preparar – dispensam-se as boas maneiras à mesa; a carne é assada e devorada em público; ela é a partilha em comum de um território existencial do qual toma parte todo o cosmos e toda forma de vida: homens, mulheres, crianças, répteis e mamíferos, aves, montanhas, plantas, deuses e espíritos canibais; fortes e vingativos, com pés grandes, como o Abaporu, todos comem; do jabuti ao tatu: tatuti, jabuatu – exceto o prestigioso guerreiro de América, Um que se mantém de fora para que todos se possam servir;

2º Modo de servir – como em América (Fig. 1)– obra de um pintor desconhecido –, cada um se serve das partes e dos blocos de afetos e devires que melhor convierem à sua natureza;

3º Modo de degustar – cortar, desossar, desfazer os segmentos dos corpos; estar suscetível à ressonância do sistema de sensibilidade-afectos envolvido pelo corpo que se come; não se fechar em uma identidade; desfazer todo rosto e todo Eu; nada de buracos negros sobre muros brancos; limá-los de cima abaixo; constituir limiares;

4º Modo de devoração – jamais parar e jamais continuar o processo ao infinito, mas efetuá-lo. Não comer muito, nem pouco; empanturrar-se apenas das intensidades – virtualidades e mundos possíveis envolvidos pelo sistema de afectos de um corpo –, nunca da sua extensão;

5º Modo de síntese assimétrica n. 1, ou síntese afetivo-política – Comer o outro é devorar um mundo na dobra de si; devorar um mundo é fazer proliferar infinitos mundos em suas dobras; reunir os arranjos de forças de um corpo aos arranjos de forças de um outro; experimentá-las com vagar, saboreá-las de segmento em segmento; do corpo outro ao corpo próprio, e em ambos o sentidos; constituir um território existencial impuro e diferenciante; dobrar a força que vem de fora na dobra de si, como o som é percebido como ressonância nas dobras do ouvido interno e a carn’outra é absorvida nas dobras do jejuno-íleo: anabolismo, catabolismo, produção de energia. Assim como o Isso: para além da metáfora. Biossíntese como metonímia inconsciente da síntese produtiva de biōs; princípio de variação biopolítica;

6º Modo de síntese assimétrica n. 2, ou regra ontológica da prudência – comer apenas até onde se possa multiplicar o múltiplo. Dispensar o mesmo, o homogêneo, a multiplicação transcendente do Uno pela multiplicidade substantiva; conjurar os segmentos duros;

7º Modo de síntese assimétrica n. 3, ou regra ética do desejo – comer, mas não para formar cânceres; experimentar cuidadosamente uma linha de fuga ou de ruptura; desertar todos os termos das sínteses, exceto aquilo que, neles, exige a multiplicação de sínteses assimétricas dos corpos, dos espíritos e de suas sensibilidades; amar a transcendência dos fatos, como a das montanhas e a das árvores, mas penetrá-las subterraneamente – em silêncio –, como quem faz rizoma com o mundo;

8º Modo de síntese assimétrica n. 4, regra ética da seleção pela potência – a verdade do ser é a devoração que pode precipitar a morte; uma vida sempre pode estar tanto do lado da morte universal, da abolição e do negativo – como em O amigo em comum, de Dickens – quanto do lado da potência inorgânica de uma vida unicamente imanente a si mesma – a prova atlética que faz a vida dos bebês ainda muito novos; uma vida que não contém senão virtuais; isso é o que exige um modo de seleção pela potência dos estados, corpos e afetos como o conteúdo mais imediato de uma ética antropofágica, que é, também, uma ética biopolítica;

9º Modo da repetição do fora, ou modo do fora da repetição – repetir dos números 1 ao 8, que, deitado na rede, esgotado do banquete, é também o ∞ corpóreo-espiritual, encarregado de uma potência inorgânica que, afinal, se confunde com a vida profunda de todas as coisas.

Foi assim que comi O.A.

E todos os nomes da História

Por baixo

Por trás

Sem dó

Subterrena aventura

O que dá em 0

0 que dá em O

Parafraseando Paes

o poeta, não o canalha –

:

brasil menormenormenormenormenor

menormenormenormenormenorenorme

potência uma vida informe

Referências

 

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1 “Foi a vida, muto mais do que o direito, que se tornou objeto das disputas políticas, ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de direitos”, escreve Foucault (2009 : 158).

 

3 Giuseppe Cocco (2009: 177) é quem parece melhor explicar este último argumento ao afirmar que “[…] nas ruínas da natureza humana encontramos um único sobrevivente, o conceito de uma vida em suspensão (vida nua) que muito se parece – embora seu conceito procure afirmar-se em um terreno intermediário entre Bios e Zoé – com uma vida meramente biológica e, logo, com uma – improvável – natureza natural: a condição de uma vida do homem não mais partida daquela animal, porque unificada na recíproca indistinção biológica. E isso porque sua eventual dimensão ontológica é puramente negativa, totalmente despotencializada: incapaz de produzir diferença”.

 

4 Procurei demonstrar brevemente a insuficiência da interpretação de Cândido sobre o modernismo oswaldiano em “O intempestivo e o desterritorializado:Oswald de Andrade e o lugar das ideias no Brasil” (Corrêa, 2012: 01-05).

 

5 Segundo Eduardo Viveiros de Castro (2011: 281), esta é também a chave da antropofagia Tupi-Guarani: “Essa capacidade de ver-se como Outro – ponto de vista que é, talvez, o ângulo ideal de visão de si mesmo […]”.

 

6 Excerto inédito, baseado nas discussões que se seguiram à mesa Biopolítica e Antropofagia, na Fundação Casa de Rui Barbosa (em 06 de setmebro de 2012), durante o Colóquio “Brasil menor, Brasil vivo”, organizado por Giuseppe Cocco e Mauricio Siqueira em parceria com a Universidade Nômade Brasil, e também inspirado na pintura “América” (Fig. 1, supra), exposta na Pinacoteca do Estado de São Paulo.

 

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