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O COMUM E A EXPLORAÇÃO 2.0

O 3º FÓRUM DE MÍDIAS LIVRES

O 3º Fórum de Mídias Livres (FML), realizado em Porto Alegre no escopo do Fórum Mundial Temático 2012, foi marcado pelo apelo à convergência. Os desafios para a democratização das comunicações no Brasil dependem de uma mobilização abrangente, de amplo espectro articulado em rede, dos grupos, coletivos e veículos que trabalham à margem dos conglomerados das comunicações. A chegada de Ana de Hollanda como ministra da cultura de Dilma, com suas relações íntimas com o ECAD, a dita “classe artística” e a grande indústria fonográfica, acabou por fechar as portas do governo aos novos protagonistas do campo cultural e das mídias livres. Em menos de um ano, o MinC da Holanda tornou-se um reduto de defesa aristocrática da “arte” contra a cultura. Daí os apelos no 3º Fórum quanto ao respeito às diferenças para a expansão de redes contra-hegemônicas ao establishment representado pela indústria cultural nacional e internacional. No “espírito do tempo” dessa convergência, não há lugar para purismos, dogmatismos, academicismos, para qualquer esboço de retorno a formas ultrapassadas de militância, consideradas analógicas ou “1.0”.

A rede Universidade Nômade, inclusive por meio da Revista Global/Brasil, participou dos dois fóruns anteriores, no Rio de Janeiro (2008) e em Vitória (2009). Em ambos, não só debateu horizontalmente, como contribuiu para a formulação de uma frente transversal de construção para as novas mídias livres e/ou redes colaborativas. O que se traduziu, por exemplo, na política dos Pontos de Mídia Livre. Numa perspectiva materialista, de fato, não adianta aferrar-se a elaborações teóricas ou cartilhas utópicas, mas, sim, identificar movimentos e lutas reais que já estão constituindo uma alternativa ao modelo da grande mídia e grande indústria cultural. Desde os primeiros fóruns, consideramos acertado o diagnóstico da importância de colocarem-se tarefas concretas para a coordenação de movimentos sociais, redes militantes e/ou mídias auto-organizadas de cauda longa. No sentido que esses vários agentes (pontos, singularidades) se qualifiquem cada vez mais para, no limite, constituirem-se como uma teia múltipla e politicamente organizada contra o status quo. Noutras palavras, constituirem-se como um comum produtivo, material e antagonista ao capitalismo: seja ele 1.0 ou 2.0, analógico ou digital.

A 3ª edição do FML, no entanto, causou estranheza. Seu calendário, a composição das mesas e suas pautas, foram pré-definidos por um círculo fechado que, quando teve a legitimidade contestada, tentou legitimar-se apelando às atividades de um “comitê executivo”, instituído em 2008, e cujas atividades e deliberações não foram apresentadas aos midialivristas em lista aberta. Em princípio, participaram desse comitê os cabeças de algumas organizações já estabelecidas. Ou seja, a maioria dos midialivristas não participou da construção do 3º FML: um evento pré-formatado e pré-pautado. Essa centralização havia se tornado conhecida pelo vazamento de um e-mail assinado por Pablo Capilé, do circuito Fora do Eixo (FdE). Vide: http://www.4shared.com/office/sgjElRbI/2012_e_as_Redes_em_Rede.html?refurl=d1url 

A mensagem, dirigida a grupos “parceiros”, convoca a formação de redes em rede e contém um calendário e uma pauta completos para 2012. Esse pacote inclui o Fórum de Mídias Livres em Porto Alegre, mas também o Festival Digitália, o Grito Rock, os encontros anuais do próprio FdE e da Casa de Cultura Digital e, finalmente, a decisão já tomada de organizar um Fórum Mundial de Mídia Livre em ocasião da Rio + 20. Entre as redes “parceiras”, citadas porém não consultadas: Pontos de Cultura, Pontos de Mídia Livre e Espaços Hackers. Quando interrogações e vozes dissonantes começavam a se fazer ouvir, o próprio Capilé informou que “não precisamos mais ficar lotando a caixa de emails de ninguém aqui com um debate que será feito a partir de agora em outras listas” Vide: http://www.4shared.com/office/VGSr5KU9/2012_e_as_Redes_em_Rede_-_2.html?refurl=d1url

O 3º FML em Porto Alegre aconteceu num ambiente onde o dissenso foi rapidamente desqualificado, e onde a convergência veio pré-estabelecida de cima a baixo. Uma forma de organização que lembra não só a burocracia estatal, como também aparelhos meramente partidários, em que são camufladas a hierarquização e a fragmentação por meio da mística do consenso. Ao invés de momento para a construção democrática, o FML se tornou o lugar de ratificação burocrática de decisões tomadas antes, alhures e por outrem! O FML tornou-se assim o teatro de mais uma comédia da representação.

Diante disso, vale a pena problematizar o estado do processo de constituição de “mídias livres” e mais em geral o movimento da “cultura” de resistência à restauração no MinC. O que significa o apelo de convergência e ao que, afinal, se pretendem fazer convergir as redes? O que está em jogo nesses consensos cada vez mais impermeáveis e institucionalizados, que são reproduzidos, muitas vezes na sua essência acriticamente, nos fóruns e encontros culturalivristas e midialivristas? O que significa que as redes (no plural) agora devam constituir-se em uma só rede?

AS REDES E OS NOVOS MODELOS DE NEGÓCIOS

De tempos para cá, se tornou costumeira a expressão “gestor de redes” e “redes em rede“. Por gestão de redes se entende a atividade de ligar os pontos e trançar os fios do que passa a ser uma cadeia produtiva. O gestor opera como um agregador dos múltiplos nós produtivos da economia da cultura. Por um lado, gere o fluxo de equipamento e trabalhadores (gestão de eventos, carreiras, plataformas); por outro, o fluxo do dinheiro (editais, patrocínios, investimentos, lucros). Na música, por exemplo, significa articular bandas, casas de show, plataformas, equipes técnicas, promoters, produtores, publicitários, críticos e intelectuais. Essas conexões compõem uma rede que o gestor administra, promovendo o empreendedorismo dos participantes e sob o guarda-chuva de uma marca. A marca, por sua vez, é construída como um modo de engajamento de seus trabalhadores, um jeito característico de trabalhar, vestir-se, negociar, em suma, uma ética e uma estética, uma forma de vida: um coletivo. O objetivo deste concerto passa a ser implementar a marca até se obter um conglomerado de redes, integradas ou “parceiras”. Funciona como um brand management, pelo qual se aplicam e aperfeiçoam processos e técnicas de marketing, determinados pelas oportunidades (e ameaças), com vistas a expandir, controlar e conservar os mercados. O processo vai produzindo sinergia e se constituindo como mercado (cultura) flexível, eficiente, sinergético, horizontal, em suma, livre como na expressão livre mercado . Tudo isso se ensina tranquilamente nas faculdades de economia ou administração da FGV, PUC, da COPPE/AD da UFRJ etc.

A REDE COMO NOVO MODELO DE NEGOCIO

Criado ao redor da música independente (indie), o Fora do Eixo opera mais fortemente na cadeia produtiva da música e se organiza no formato de coletivos de produtores. O FdE, aqui, é fora do eixo produtivo das grandes gravadoras e produtoras, e não somente fora do eixo RJ-SP. Para ser autônomo, é preciso não só fazer música fora do mainstream, mas passar a ter controle sobre os processos de distribuição, divulgação, organização de eventos, parcerias etc. Ele conta com gestores “orgânicos” que se entregam 24 horas para a “causa”, numa moral do trabalho que lembra tanto as vanguardas profissionalizadas de militantes liberados quanto o executivo workaholic das multinacionais. Desde 2005, o FdE se expandiu à margem das redes oligopólicas da indústria fonográfica, de laços amiúde familiares e muito verticalizados. Ele se propõe a desenvolver a cauda longa de produtores e bandas pelo país, sem se subordinar à indústria cultural. Nesse intuito, vem organizando shows, festivais, turnês, encontros, debates e fóruns, fornecendo plataformas e espaço para bandas menores e artistas jovens, iniciantes ou com pequenos públicos. Nos anos Lula, o FdE foi bem-sucedido em angariar sistematicamente verbas de editais do Ministério da Cultura (MinC), bem como patrocínios (que também são públicos) de empresas e bancos.

Assim como outros grupos político-culturais aliados ao MinC de Gilberto Gil e Juca Ferreira, encampou o discurso culturalivrista e digitalista, de contraposição aos atravessadores tradicionais e à supervalorização do artista criador. Trata-se de uma concepção de novos modelos de negócios, adaptados à era digital, às licenças Creative Commons e à riqueza das redes onde a informação não teria rivais.

 Mais recentemente, o FdE começou a se mover para o eixo. Nascido nas regiões centro-oeste e norte, instalou-se com sucesso em São Paulo e Minas Gerais, e agora tenta avançar mais decisivamente para o Rio de Janeiro e Pernambuco. Além disso, começou a buscar parcerias com bandas, por assim dizer, menos alternativas, contratando artistas de maior visibilidade, e também através de conexões mais fortes com o setor público (governos estaduais e prefeituras) e mesmo partidário (por meio do Partido da Cultura, de iniciativa do próprio FdE).

A PRIMEIRA GERAÇÃO DE CRÍTICAS AO NOVO MODELO DE NEGÓCIOS 

 O FdE como rede centralizadora de redes já foi objeto de uma série contundente de críticas. Em geral, essas associam uma análise correta do funcionamento material desse novo modelo de negócios a uma perspectiva teórica e política ambígua, como se o FdE fosse um “desvio” dos princípios da remuneração do “artista” ou até da luta revolucionária. Por corretas que elas possam ser no plano da análise, essas críticas são politicamente insuficientes. Contudo, merecem a atenção dos ativistas.

Dentre as críticas ao FdE, destacam-se: 1) a dependência de verbas estatais, 2) o caráter político do grupo, 3) a exploração dos artistas com o não-pagamento ou minoração dos cachês, e 4) um comportamento predatório dos mercados.

 1) Quanto às verbas estatais, argumenta-se que eles não são sustentáveis como projetos culturais, que o dinheiro público acaba aplicado em iniciativas mais amadoras e de pequeno público. Essa crítica tende a ser reacionária, na medida em que a grande indústria supostamente “profissional” também sobrevive de uma relação preferencial com os governos e, na prática, tende a se beneficiar de montantes bem mais vultosos a título de isenção fiscal, parcerias, facilitações e verbas de publicidade. Todos os artistas medalhões com os quais se identifica a Ministra Buarque de Hollanda recorrem aos subsídios estatais por meio das Leis de renuncia fiscal. Ademais, o Estado tem por função constitucional promover o acesso, a qualificação e a produção da cultura, que é por si mesma um retorno social dos investimentos. O sonho do capitalismo é todos viverem de salário e venda de produtos, duas formas sociais do mesmo fenômeno de mercantilização do trabalho, do mundo da mercadoria. A crise do capitalismo global colocou a nu essas abstrações.

2) Quanto ao componente político, à direita, a crítica tende a se contradizer, pois a indústria cultural e a grande mídia igualmente mantêm uma agenda política, rigorosamente ideológica mesmo ao silenciar a respeito de suas opções e tendências. A diferença do FdE é assumir agressivamente a pauta política, inclusive no jargão de seus membros. Já na vertente à “esquerda”, o FdE  banalizaria as lutas sociais e marchas, esvaziando o seu caráter conflitivo e antagonista. Sua aparência esquerdista não passaria de estratégia de marketing para cooptar o sentimento de revolta e insatisfação da juventude. Porém, diz-se, não ataca o sistema; pelo contrário, é parte dele. Essas avaliações, das quais o coletivo Passa Palavra é emblemático, acabam reduzindo a crítica à denúncia do desvio entre teoria e prática. É preciso avançar a análise sobre a matriz da exploração no contexto do capitalismo cognitivo, assim como a composição de classe que lhe resiste, o que falta nessas análises em comento. Não percebem como a teoria circula e viabiliza certas práticas e vice-versa, como a teoria é pensamento estruturado e organizado para fazer sentido e ser efetivo em determinado contexto de relações. Numa perspectiva materialista, não adianta acusar o FdE de anticapitalista de menos, ou de falsidade ideológica, mas destrinchar a matriz prático-discursiva que possibilite algo como o FdE avançar ao mesmo tempo sobre mercados e espaços tradicionalmente ocupados pelas esquerdas. O que interessa não é demonizar o FdE, como se fossem “traidores”, mas entender como, por quais mecanismos um novo modelo de negócio avança e consegue fazer operações de hegemonia nas redes de movimento. Até o ponto de ser – mundo afora – apresentado academicamente como “rede de ativismo descentralizado”.

3) Outro bloco de críticas circunda o pagamento dos cachês. O FdE aufere verbas públicas e de patrocínio, porém não remunera diretamente a maioria dos artistas que performam em seus shows e festivais. Geralmente paga passagens, alimentação e hospedagem apenas para os músicos (e não à toda a equipe), o que não deixa de consistir numa remuneração indireta, mas não os cachês. Em parte, isto decorre da própria concepção de cultura como cadeia produtiva. Em vez de ser encabeçada pelo artista-criador, como no discurso reacionário do ECAD e do MinC da Dilma, a economia da cultura se faz com a cauda longa de produtores, trabalhadores e serviços agregados. Daí a menor importância conferida aos cachês, em relação à retroalimentação do processo como um todo. Ao atribuir ao artista um papel quase sagrado na produção, deixando de lado o processo social como um todo, essa crítica também é insuficiente, embora legitima na boca de artistas que se recusam a entrar no esquema do Cubo Card: ou seja de receber pagamentos com base em títulos emitidos pelo próprio FdE, algo como uma moeda complementar.

4) Finalmente, quanto à predação, o FdE não esconde a sua estratégia de inserção e dominação dos mercados. Não à toa, num Fórum de Mídias Livres e no Fórum Social em geral, o extremo pragmatismo de seus membros em contornar debates para concentrar-se nas pautas do próprio grupo e suas possíveis convergências (parcerias e negócios). Atualizando o par estratégia/tática, o FdE não cansa de esclarecer que mantém a hegemonia sobre suas composições com grupos estatais ou privados: o MinC, a Petrobrás, o Itaú Cultural, a Coca-Cola etc, pois estaria “hackeando” essas instituições menos do que sendo “hackeado” por elas. Novamente, neste âmbito, o FdE lembra tanto uma vanguarda leninista (na luta expansionista por hegemonia), quanto uma multinacional (na luta expansionista pelo controle dos mercados). Se o linguajar é “pós-pós”, a prática é bem aquela de uma captura de novas redes produtivas dentro de uma só rede, sendo essa estruturada segundo os métodos mais tradicionais do século 20.   A pauta — importantissima — da flexibilização dos direitos autorais acaba sustentando como que uma “vontade geral”. Ora, quando tratada fora de um contexto de luta contra a mercantilização da vida, a flexibilização dos direitos autorais serve mais ao capital do que aos movimentos. Afinal, no novo modelo de negócios que o Facebook ou a Google expressam bem, enquanto muitos trabalham de graça (free, livre) em frente seus computadores, investindo suas vidas na internet, poucos ganham rios de dinheiro no mercado financeiro. O mesmo vale para o mercado fonográfico, e para cultura digital em geral, onde muitos trabalham de graça enquanto os gestores, ou produtores culturais dos grandes festivais e suas polpudas verbas de publicidade, negociam milhões. Esse é o novo modelo de negócios que tenta rearticular o capital no campo dos comuns, para rearranjá-lo no interior mesmo de sua nova crise. Assim, a multidão é liquidada à crowdsourcing, o objeto da exploração do trabalho livre, no sentido de gratuito.

 Mas, aqui também, o que interessa não é “denunciar” os novos modelos de negócios, mas entender como eles funcionam e por onde passam os conflitos que os atravessam.

A PERSPECTIVA DO COMUM

 É urgente ir além dessas “denúncias”. Isso significa recolocar a questão de um ponto de vista crítico e materialista. Em vez de moralizar a questão ou contornar seus principais enovelamentos práticos-discursivos, se faz necessário tomar mais analiticamente a expansão das redes sob o discurso midialivrista e culturalivrista (da qual o FdE é apenas um detalhe). Trata-se de contextualizar essas dinâmicas produtivas sob a alcunha “cultura livre” ou “mídia livre” sobre o pano de fundo do ciclo de lutas e revoluções que se afirmou, claramente, ao longo do ano de 2011.

As lutas, ocupações, marchas e acampadas globais exprimem um desejo de mudança e uma forma de organização que as conferem um caráter antissistêmico. Contudo, a crise global, essa proliferação de acontecimentos e embates, tanto pode resultar numa ruptura com o capitalismo global financeirizado, quanto numa nova reestruturação e captura, uma nova síntese, em suma, em algo como um altercapitalismo (ou capitalismo 2.0). Esse capitalismo já se anuncia como um regime de acumulação que abre mão da retórica e até das instituições democráticas, servindo como exemplo o caso da Itália, onde o sistema financeiro global decidiu compor ele mesmo o gabinete de governo do país, com o primeiro-ministro Mário Monti. Por isso, é preciso assumir a situação de crise na sua dimensão ambivalente, propugnando pelo aprofundamento do ciclo de lutas, ou seja, pela radicalização da crise. Daí a relevância de uma perspectiva da crise que não perca de vista a dimensão antagonista, em vez de convergir convenientemente para uma síntese neutralizada.

Dito isto, uma boa maneira de apreender as alternativas da crise se dá por meio da perspectiva da constituição do comum.

O comum, na esteira do marxismo operaísta, da filosofia da diferença e da antropologia canibal, é uma organização política das relações produtivas e materiais. Não só como modalidade de convivência, cooperação e produção, mas também como base material para a auto-formação e auto-valorização do trabalho, das redes colaborativas, da criação de formas de vida a partir de formas de vida, da constituição antropofágica de perspectivas de mundos além do capitalismo. O comum está além do público-estatal e do privado, como esfera transversal onde cultura, economia e política se amalgamam gerando potências de vida: biopolítica e auto-valorização. Trata-se da ocupação intensiva do espaço e do tempo, sob outra gramática organizacional. Uma organização heterogênea que se constitui não para nivelar as diferenças, mas para produzir a partir delas, gerando novos entes e processos. Sob a perspectiva do comum, se podem abordar e elaborar estratégias para muitos campos políticos: a gestão de recursos naturais e da própria relação entre natureza e cultura; a produção e reprodução da vida social (saúde, educação, políticas da mulher, ações afirmativas); a geração, circulação, distribuição e alocação de energia, renda, conhecimento e direitos.

 Por outro lado, é preciso admitir que a constituição do comum não ocorre com a produção de um espaço homogêneo e consensual, como se superasse a luta de classe numa convergência definitiva. O comum é substância híbrida que não é eclética, mas atravessada por atritos e conflitos, e que troca energia a todo momento entre as divisões sociais e as pautas políticas, entre a materialidade da pobreza e a reapropriação da riqueza social. Ademais, o comum que interessa é necessariamente antagonista. Mas não é antagonista porque se opõe a alguma grande entidade chamada Capital, ao qual devêssemos convergir para efetuar uma luta contra-hegemônica. O discurso da contra-hegemonia não questiona o poder, mas se limita meramente a disputá-lo, numa prisão dialética. O comum antagoniza ao capital enquanto relação social, dentro da qual estamos todos, da mesma maneira que as relações de poder. Por isso, não tem cabimento dissociar fins e meios, o que geralmente está implicado no par estratégia/tática. A relação social do capital não pode ser combatida senão na afirmação de relações outras, além de seus rendimentos como métrica, exploração e subordinação produtivas. O comum, portanto, é menos o fim do caminho que o ponto de partida, é menos a saída da luta do que o próprio terreno onde a luta entre comunismo e capitalismo passa a acontecer. 

Discordando dos saint-simonianos digitais (ou tecnutopistas) e dos ultra-liberais das redes, é preciso admitir que a centralidade do comum não significa que as dinâmicas produtivas que o constituem não sejam objeto de novas investidas do capitalismo, pós-moderno ou cognitivo. Quer dizer, da reconfiguração das relações sociais atravessadas pela divisão de classe e pelo comando capitalista. O domínio do comum também (ou sobretudo) é passível de expropriação.

 Mas como se controla o trabalho em dinâmicas de comuns criativos e colaborativas? Qual é a tal diferença entre o capitalismo “analógico” e “capitalismo digital” (para usar um dos chavões binários dos intelectuais apologéticos do “pós-pós”)?

Com efeito, o que muda é a exploração: o capitalismo 1.0 organizava a cooperação entre as forças produtivas para poder explora-las. O “comum” era assim “produzido” (e imediatamente subsumido) na divisão capitalista do trabalho (na relação salarial) e explorado indiretamente, por meio dessa divisão técnica. O capitalismo 2.0, ao contrário, explora diretamente o comum (a colaboração) que já existe, como condição prévia: o trabalho colaborativo entre as singularidades (os pontos). No capitalismo 1.0, a exploração determina a colaboração. Um paradoxo que emerge na ambiguidade dos temas do “emprego”. No capitalismo 2.0, a colaboração é condição da exploração e por isso pode acontecer por fora da relação de emprego, na precarização da relação salarial, no terreno da empregabilidade (workfare).

A empresa capitalista, neste cenário, não pode mais controlar diretamente a produção. Porque, na economia da cultura e do conhecimento, a dinâmica do valor está concentrada no capital variável. Noutras palavras, não está mais atrelada ao domínio dos meios de produção e das máquinas, nas condições objetivas da produção, mas na própria subjetividade, na capacidade dos sujeitos cooperarem, criarem em conjunto e se reinventarem. A vida como um todo é investida, à medida que a subjetividade atravessa não só o tempo de trabalho propriamente dito, mas as ações mais cotidianas, o dia-a-dia, a linguagem, a ética e a estética dos sujeitos. É por isso que, no capitalismo cognitivo, a produção social ocupa todas as esferas da existência: o lazer, a educação, os esportes, as relações amorosas, a família, o Estado etc. Não admiram as atividades da publicidade, isto é, a cognição sistemática dos valores de uso, conseguir enxergar valor a ser expropriado por toda parte. Desta forma, busca subsumir as potências de vida em produtos vendáveis, em um imaginário ou em estilos de vida que determinada marca representa. A atividade por excelência do capitalismo cognitivo é o brand management, que opera nas condições subjetivas da produção social.

Por um lado, essa administração capitalista das subjetividades extrai uma quantidade imensa de mais-valor a partir do comum, ao passo que camufla a exploração ao contar com a participação direta dos explorados, assim neutralizando e mistificando o antagonismo entre exploradores e explorados. Por outro, a multidão dos expropriados pode organizar-se autonomamente e dispensar o gestor capitalista. Isto significa conferir um caráter afirmativo, radicalmente democrático e antagonista ao comum. Ou o comum é uma prática política, ou não é.

VOLTANDO AO CASO DO FORA DO EIXO

A extração de mais-valor do comum no Circuito FdE não reside, como supõe certa crítica moralista, em algum desvio ou malversação de verbas públicas. Não é que as planilhas não fechem, como se houvesse um rombo escuso. O FdE é bem sucedido (a maioria das vezes) em abrir integralmente as planilhas orçamentárias e prestar contas da aplicação dos recursos. É que, dentro da lógica da teoria do valor, a expropriação do comum não aparece. Pensado isoladamente, caso a caso, o capital investido na produção dos eventos e na gestão das carreiras corresponde à remuneração das partes envolvidas e aos custos operacionais e comerciais. A questão é que, ao assumir o brand management “Fora do Eixo”, sucede uma valorização paralela e cumulativa. A acumulação de valor se dá na integração, na sinergia, na socialização dos múltiplos trabalhos e projetos tomados isoladamente. Daí a formação de um autêntico capital social, de uma intensificação da produção em rede. Essa valorização difusa supera, exponencialmente, a possível extração de lucro dos empreendimentos isolados. 

A riqueza das redes (Y. Benkler) aparece, por conseguinte, não da produção de lucros por edital ou evento, mas por meio da apropriação global do valor cognitivo: exploração do comum! Se o FdE reúne confiança coletiva para emitir débitos contra si mesmo, como promessas de pagamento sob o seu guarda-chuva, como o cubocard, isto se deve, em boa parte, ao lastro conferido pelo capital social (“In FdE We Trust!“). O comum é expropriado e se torna renda: não é por acaso que o próprio Capilé fala de um subprime do FdE! Nessa gestão rentista, quanto mais redes parceiras (“redes em rede“), quanto mais expansível o FdE se afirmar como brand, maior a captura da produtividade difusa: as redes que caem na rede. Nesse sentido, o FdE é o antípoda da política dos Pontos!

Isso aparece, evidentemente, nas polpudas verbas de publicidade, no interesse que grandes marcas e empresas manifestam em relação aos enfim reencontrados representantes da nova juventude, das lutas da geração, do estilo indie, descolado, alternativo etc. Ao não pagar cachês e informar que a planilha fechou, que não sobrou nada, redes como o FdE deixam de divulgar a cadeia produtiva da cultura em sua inteireza, em sua verdadeira cauda longa de circuitos de valorização e apropriação. Num contexto nacional de ascensão de renda e consumo, no interior e nas periferias, o interesse pelos novos mercados consumidores é redobrado. Não soa ilógico, portanto, o FdE propor a participação da Coca-Cola em uma marcha da liberdade em São Paulo, mesmo sem a marca estar diretamente exposta no evento. E é aí, também, que aparece o caráter não-transversal do “movimento”. Não admira, ainda, o caminhar do FdE em direção ao eixo. Trata-se de um ciclo, onde o indie, o alternativo, o independente rapidamente se integram no novo mainstream. Os gestores 2.0 das redes em rede aos poucos mostram a face como os novos capitalistas, afinados com o discurso altercapitalista da sustentabilidade, do cool e da indignação seletiva. São gestores do comum que precisam abafar a qualquer custo o antagonismo e o dissenso, ao mesmo tempo em que mistificam a exploração dos comuns com discursos enviesadamente radicais e antissistêmicos.

E O HOMEM CORDIAL VIROU “PÓS-PÓS”

O debate nas redes passou a ser patrulhado pelo mais último jargão: todo dissenso é rancoroso, desatualizado, analógico. O discurso tem que ser “novo” e “pós” e, nessa medida, será “digital”, plugado, pós-rancor. O homem cordial passou a esconder seu autoritarismo soberbo atrás do pensamento binário do “Pós-Pós”.

 Ao expor o processo interno de centralização dos calendários de eventos, o FdE não faz mais do que revelar novamente a relação do capital (social). Discordâncias e dissensos significam inscrição em “listas de queimados”, expressando o comando subjacente à gestão das redes. Ao pautar o Fórum de Mídias Livres com o discurso da convergência, ele e suas redes parceiras não fazem mais (e não permitem que se debata mais) do que uma reprodução e alastramento do modelo deles, que, do ponto de vista do novo negócio, vem dando certo. Vem dando certo porque se concilia bem com o funcionamento do Estado e do mercado, quiçá de modo mais eficiente e sinergético do que os modelos antigos, oligárquicos e familiares.

A apropriação do comum depende que todos não só participem da contra-hegemonia, mas invistam a subjetividade, que sejam subsumidos como subjetividades. Não basta trabalhar, é preciso se integrar 24 horas por dia à “causa”, e com entusiasmo. O discurso do pós-rancor aí se inscreve funcionalmente. Assim, se alguém dissente, só pode estar numa vibe ruim, rancorosa, e isso não é só ruim para o consenso, mas para a própria subjetividade que depende da cooperação engajada e integral em primeiro lugar. O capitalismo cognitivo prescreve mais uma subjetividade do que tarefas propriamente ditas. Daí é preciso que todos cooperem felizes numa lógica de trabalho grátis (free, livre), ou do contrário não se pode extrair a renda do comum. No fundo, talvez, o capitalismo desde sempre seja gestão de redes com o propósito de obter mais-valor e acumular a riqueza. E desde pelo menos o modelo japonês, que a sociologia do trabalho conhece por toyotismo, subsista a ideia de gestão horizontal de redes, um outro nome para o controle dos trabalhadores. Por isso, às vezes, a resistência por dentro do comum pode se dar com a não-colaboração. Através da não-colaboração, a ética hacker se mostra mais potente, hackeando consensos e comitês. A ética hacker nesse sentido é uma prática sabotadora e radical. A colaboração entre os hackers se dá através da não-colaboração com práticas antidemocráticas, cada ato de desestabilização e/ou destruição feito pelos hackers é também um ato de cooperação, entre singularidades que se mantêm enquanto tais: o fazer-se da multidão!

O BRASIL VIVO COMO POLÍTICA DO COMUM

Nos últimos tempos, tem ficado claro como é indispensável produzir o dissenso por dentro dos fóruns, congregações, discursos e práticas do culturalivrismo, midialivrismo e digitalismo. Da mesma maneira que tem ficado claro que a democracia depende das praças Tahrir, Puerta del Sol, Liberty Park e de Pinheirinho. Para que tudo isso não convirja nalguma matriz para um novo capitalismo e não a sua ruptura. É preciso, imediatamente, romper certos consensos, não só sobre a cultura livre, mas também sobre o código aberto, o software livre, a horizontalidade de redes e os creative commons.

Isso pode acontecer, como propomos, dentro de uma perspectiva antagonista de comum. Sair dos cercamentos (enclosures), com efeito, não significa contornar a apropriação do trabalho, mas somente um tipo dela. Tem acontecido uma verdadeira multiplicação das formas rentistas de valorização do capital, que poucos têm se proposto a analisar, mais preocupados em ver a questão como um problema jurídico ou de sustentabilidade profissional.

Embora o software livre conviva bem com marcas consagradas, ele permanece como importante terreno de lutas, que pode e deve ser articulado com as lutas pelo hardware livre e pela banda larga, onde persiste uma gigantesca extração de renda. As lutas não podem ser resumidas às frentes digitalistas, nem a um retorno nostálgico ao 1.0, de tomada dos meios de produção simplesmente objetivos. De qualquer modo, é fundamental repensar as formas de organização, para contestar o núcleo do modo de produção na apropriação do trabalho social. Só assim se pode manter aberto o horizonte de lutas, contra as sínteses conciliadoras. Confrontado pelo ciclo de lutas, o capitalismo se reinventa, e as teorias precisam se colocar à altura das lutas que estão a um passo a frente.

Não há solução dos quebra-cabeças da gestão e da sustentabilidade, a não ser em lutas e políticas públicas que assumam as dimensões biopolíticas da produção do comum. Está em questão o reconhecimento das dimensões produtivas da vida e da diferença como condição da geração da própria vida. Enfim, não se trata de organizar um show, ou um festival, ou um projeto, mas uma política viva, permanente, da cultura do trabalho, uma política do Brasil vivo. A política dos Pontos de Cultura, aliando dinâmicas de redes e formas transversais com uma base material de renda e liberdade, já é um esboço dessa saída potente à crise, contra todas as tentativas de reestruturação do altercapitalismo ou capitalismo 2.0. A política dos Pontos afirma experiências do comum, tão inovadoras e potentes, ao intensificar a produção desejante e os processos de auto-valorização e autonomia e, assim, abrir todos os mercados e marcas à multidão de diferenças e à proliferação de lutas sociais que é o comunismo mesmo, aqui e agora.

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