Esse texto teve sua redação iniciada logo após a Primavera Árabe, de que ele se inspira, e foi continuada ao longo dos últimos meses, ao mesmo tempo em que se davam os movimentos de ocupação no mundo, a guerra da Internet protagonizada por Anonymous e, no Brasil, diversas mobilizações em torno da defesa dos direitos de diversos sujeitos: desalojados da Copa e Olimpíadas, atingidos por barrages Belo Monte (bem como extrativistas, ribeirinhos), indígenas do Mato Grosso do Sul, a natureza como sujeito de direitos (diversidade socioambiental), Pinheirinho… Partindo da idéia de transversalidade, ele busca fazer ressoar o exercício filosófico com outras práticas e experiências do pensamento (antropologia, comunicação, esquizoanálise, etc.), sem cair numa “transdisciplinaridade”. Ao contrário, o trans aqui quer desembocar numa experiência indisciplinada do pensamento1.
Uma prática transversal
Ao se referir ao principal obstáculo às novas lutas políticas de seu tempo, Félix Guattari iniste na importância decisiva do abandono disto que chamamos vida privada. “É preciso acabar com o respeito pela vida privada: é o começo e o fim da alienação social”, diz ele. Uma “unidade de subversão desejante” não tem mais vida privada, mas nem por isso ela se identificaria ao outro pólo do pendulo do poder, aquele da vida pública. Ela se volta ao mesmo tempo para o interior e o exterior, mas instaurando um outro espaço, propriamente intensivo. Trata-se ai de uma forma de subjetividade que Guattari caracteriza como não-individual, mas também não coletiva. A luta revolucionária deve começar pela quebra desses modelos abstratos produzidos pelo capitalismo.
Porém, esses próprios modelos fazem parte de uma estratégia mais ampla de interiorização da repressão. Dado que as formas clássicas de repressão não eram mais eficazes (falamos das décadas de 60 e 70), era preciso buscar novas vias de controle social. A partir do momento em que Guattari escreve, e de maneira mais intensa em nossos dias, os poderes instauraram uma miniaturização contínua do fascismo. “Não se utiliza mais cassetetes, necessariamente, nem campos de extermínio: procura-se, preferencialmente, controlar as pessoas com liames quase invisíveis que os ligam de maneira ainda mais eficiente ao sistema capitalista (ou socialista-burocrático) na medida em que eles os investem de maneira inconsciente” (cf. Revolução Molecular). Estamos diante disso que Guattari chama de agenciamento coletivo de enunciação: o que eles produzem não é uma ideologia, mas os próprios meios de produção e as relações de produção. Desde então, família e escola, por exemplo, podem ser compreendidos segundo essa mesma função de equipamento coletivo, preparando as subjetividades para as relações de poder dominantes. As pessoas, diz Guattari, agora servem para canalizar um trabalho de semiotização que passa, cada vez mais, pela televisão, pelo cinema, pelos discos, pelos quadrinhos, etc. Tal trabalho promove uma injeção de representações inconscientes na produção desejante cuja finalidade é aquela de canalizá-la, de delimitá-la de tal maneira que se possa estabelecer uma cumplicidade do inconsciente diante das formações repressivas dadas.
Essa análise, Guattari não pôde efetuá-la senão instaurando um novo conceito de prática que era igualmente uma nova prática do conceito: a transversalidade. Ela aparece desde 1966 em reuniões do grupo FGERI que reunia psiquiatras vindos do movimento da psicoterapia institucional e de outras atividades, tais como arquitetos, urbanistas, professores, militantes, psicanalistas, sociólogos, antropólogos, políticos, etc. O que os reunia era o fato de viverem em uma sociedade modernizada, economicamente próspera, mas cujas formas de sociabilidade e as estruturas psicosociais evidenciavam-se pobres. Assim, não somente as atividades profissionais de cada um podia se tornar objeto de uma reflexão, mas igualmente o conjunto de suas atividades sociais, formando uma multiplicidade em que os diversos elementos se interpenetravam. Como mostra Suely Rolnik, a reflexão sobre os projetos do grupo, seus problemas de vida cotidiana e de desejo, tornavam-se as condições para captar sob uma perspectiva transversal o objeto de interesse de cada um. Tratava-se, portanto, de um trabalho analítico de que cada um fazia um uso não somente conceitual, mas imediatamente vital, ligado a alguma intervenção direta na vida de cada um, tal como ela se inseria num determinado meio social (político, econômico), mas também imaginativo, geográfico, ecológico, cósmico… Podemos vislumbrar ai o germe de um método válido tanto para a pesquisa quanto para a intervenção psico-social, mas igualmente para a experimentação social, política, imaginativa, vital, etc. Método de Análise em situação, a transversalidade se constitui, pois, como o lugar do sujeito inconsciente do grupo, lugar da potência real onde se efetuam os investimentos de desejo de seus membros, a maneira de um sintetizador aberto a toda sorte de disjunção criativa, forjando novos espaços intensivos a serem ocupados também intensivamente: uma prática permanente de criação de novas possibilidades de vida: “A Análise, instaurando o espaço de uma formulação permanente da demanda inconsciente e a possibilidade de sua leitura através da interpretação da transversalidade, cria as condições para que o grupo assuma o sentido de sua praxis. Recupera-se a dimensão analítica da instituição e, pelo mesmo gesto, recupera-se a dimensão histórica da psicanálise – toda Análise é institucional”. A transversalidade nasce, assim, imediatamente como intervenção “micro-política” que, escapando das formas representacionais que fixam os lugares nos quais se constituirão formas assujeitadas de subjetividade (aquelas, por exemplo, centradas nas coordenadas subjetais e objetais, necessariamente egocentradas), instala as pessoas na singularidade dos “agenciamentos coletivos de enunciação” e contribui, dessa maneira, para a mutação tanto pessoal quanto social. É esse sentido primeiro da transversalidade enquanto prática concreta e indisciplinada no seio de um agenciamento coletivo que nos interessa aqui e não aquilo que ela se tornou mais tarde, ou seja, um gadget no mercado das técnicas da psicologia social, no mercado das disciplinas do saber acadêmico. Propomos lançar pistas para uma reapropriação da transversalidade, enquanto prática perspectivista, para pensar os agenciamentos contemporâneos implicados nos diversos usos das tecnologias da comunicação: aqueles das novas estratégias de combate político aos pólos de Poder, das novíssimas formas de interiorização da repressão.
Web 2.0 e as performances especulativas: a equivocidade dos regimes comunicacionais
A criação espaço-temporal tornada possível pelas tecnologias da comunicação (TC) coloca, há já algum tempo, novos problemas para o pensamento. A conectividade instaura uma problemática comunicacional-política de novo tipo que se manifesta, primeiramente, enquanto disjunção entre dois regimes comunicacionais (que são também diferentes “regimes sensíveis”, no sentido rancièriano do termo2) diversos sob todos os pontos de vista. Eles exigem um verdadeiro exercício de pensamento transversalista a partir da Web, sua fluidez e potência em se voltar contra a solidificação Estatal e da Axiomática do Capital.
É verdade que a Blogosfera, os Wikis, as Redes Sociais, jogam um papel importante no engendramento, organização e efetuação de mobilizações políticas diversas, como se pôde constatar na Primavera Arabe, na Praza del Sol, nas revoltas na Inglaterra, no Ocupe Wall Street, na Rússia e alhures. Dada a extensão do uso das TC no mundo, a Internet participa cada vez mais das insurreições, porém ela não é ainda plenamente insurreccional. O uso da Internet oscila entre a exploração do potencial criativo das tecnologias e sua subsunção aos dispositivos de controle. O Creativecommons, o Copyleft, o Wikileaks, de um lado, a governança dos novos espaços através da Biometria, do Copyright, os Departamentos de Segurança de outro. De todo modo, tanto o controle quanto os usos liberadores implicam a elaboração de uma nova estrutura de produção que nos obriga a redefinir o próprio humano levando-se em conta as novas TC (mas também a engenharia genética, robótica, próteses, etc.). Nesse quadro, oscila-se entre um pensamento axiomatizante que é não somente homogêneo, mas homogeneizante, para a produção do capital e a constituição de um mercado global de in-formação, ou seja, dos datas (mas também do patrimônio genético de povos tradicionais, passando pela biodiversidade) – como diz Bill Gates, business com a velocidade do pensamento –, e um pensamento transindividuacional que é não somente heterogêneo, mas heterogenético, para a criação de novas possibilidades de vida.
Contudo, essa partilha parece um tanto quanto simplista. Tomemos o exemplo, a que a última década assistiu, de uma empresa que se encarrega da segurança de dados na Web. A Regify, contração de “register” e “certify”, realiza a criptagem de emails, sua autenticação e a gravação quando de sua recepção pelo destinatário, todo um respeito da vida privada, no sentido de que falavamos acima, que concerne ao segredo comercial para uma empresa, a confidencialidade para um Estado, o direito de autor ou a propriedade intelectual para a Indústria Cultural e, finalmente, a segurança de comunicação para todos os usuários da Internet. É preciso notar que esse zelo com os dados privados também pertence aos movimentos liberadores que protestam contra sua captura, armazenamento e uso pelas Grandes Corporações ou pelo Estado. Ora, esse respeito à vida privada ganha uma extensão paradoxal na Web, posto que ela se torna o objeto de um contínuo controle de segurança. Ela estende assim uma formação de poder ligada à individualidade, ou seja, a diferenças simplesmente exteriores, empíricas, despotencializadas. Chamemos de midiação à operação, num meio qualquer, que produz diferenças meramente exteriores, identidades estáveis, simples variedades extensivas (estatísticas) que não suscitam nenhuma variação qualitativa, passagens que não fazem nada se passar (consumo), movimentos relativos que nos conduzem de um território a outro de uma vida social bem codificada – o que é válido, nesse caso, para a vida dentro ou fora da Matrix… Cada formação de Poder remete à midiação como operação comunicacional concreta, imanente aos agenciamentos que a efetuam.
A midiação é o modo de comunicação próprio a isto que Guattari chama de “grupos assujeitados”, ou seja, os grupos que recebem sua lei do exterior, onde há, portanto, divisão do socius. Se, em tempos de Web 2.0, esses grupos assujeitados podem atingir uma extensão absolutamente gigantesca (o número de usuários do Facebook, por ex.), não é essa variação quantitativa que pode bastar para identificar uma diferença de princípio entre os antigos grupos e os novos grupos midiatizados – porque, no entanto, há uma diferença. Na verdade, a particularidade dos grupos assujeitados 2.0 consiste no fato que sua lei exteriorizada é a própria rede de midiações internas que lhes são próprios – e nada mais que essa midiação. O modelo de difusão próprio ao Twitter, que nada mais é senão uma reprodução e uma exaltação do esquema produtor/consumidor engendrado na sociedade industrial, fornece o exemplo mais evidente disso. “The medium ist the message”, a máxima de Macluhan não vale senão para um grupo assujeitado, num grupo que se define antes de tudo pela organização interna de sua comunicação propriamente midiática – enquanto o grupo em nada participa da instauração da dita organização. A gramática da interface funciona como palavra-de-ordem. É preciso se perguntar quais modelos sociais se é forçado a reproduzir quando se é um friend no Facebook ou um follower no Twitter. O problema da midiação não é, primeiramente, aqueles dos conteúdos ou das injunções normativas. A lei do grupo assujeitado 2.0 encontra-se já no programa instalado e utilizado. É nesse sentido que as mídia empíricas (analógicas ou digitais) nada fazem senão efetuar verdadeiras máquinas midiáticas propriamente onto-genéticas, pois elas operam diretamente no que cada ser está em vias de se tornar (devir), frequentemente para impor um status quo a esse devir, cortando-o e o conectando ao circuito da produção capitalística, projetando-o sobre uma tela na qual a vida contempla um simulacro de si, como os ciclistas no filme “Bicicletas de Belleville”, segundo um controle não somente contínuo, mas continuado, intervindo nos agenciamentos desejantes: toda uma engenharia ontogenética midiática.
Guattari insistia na necessidade de uma prática política renovada capaz de quebrar o arranjo repressivo da energia libidinal, de liberá-la reconectando-a com as empreitadas múltiplas, finitas, conjunturais, historicamente delimitadas, geograficamente ligadas a um meio, uma atmosfera, a uma terra. “Não é senão sob essa condição que as singularidades do desejo poderão ser respeitadas”, afirma Guattari, no seu “Revolução molecular”. O que Guattari coloca como condição de uma re-singularização vital e de uma reinvenção da existência é precisamente um agenciamento do socius capaz de articular uma economia transindividuacional do desejo, ou seja, fazer comunicar transversalmente pessoas, gestos, paisagens, circuitos econômicos-semióticos-relacionais-socioambientais, etc. Esse agenciamento não enquadra o desejo segundo uma ordem preestabelecida, mas torna real uma experiência pela qual o desejo pode se exprimir imediatamente no campo social, re-singularizando-se, constituindo uma unidade de subversão desejante. Não se trata mais, nesse caso, de uma simples diferença exterior produzida por uma operação midiática (as divisões do Poder), mas de uma diferença intensiva capaz de repercutir sobre o conjunto do campo social, contribuindo para a instauração de novas maneiras de sentir, de existir, de pensar, de habitar, de imaginar, de corporalizar, etc. Chamemos de imidiação a essa operação que libera uma energia do desejo em cada agenciamento e que o investe de maneira singular, abrindo um campo de possíveis, fazendo fugir o social, liberando-o dos códigos que o encerravam dentro de um possível enrigecido.
O que a imidiação coloca em jogo é a criação de “grupos-sujeitos”, de grupos autônomos. Assim, o que Guattari teoriza nos anos 60 é uma espécie de “entrismo” na teoria que seria largamente aplicável à situação presente do ciberespaço. “Quando um sujeito quer se afirmar no plano desses grupos, é necessário que ele reconheça, antes de mais nada, que não há lugar para ele no estado atual da mecânica social. A partir disso, ele é obrigado a fazer intrusão, a fazer violência no sistema existente” (Psychanalyses et transversalités, p.43). A terceira etapa consiste, no caso da teoria, em desviar o sentido dos conceitos que são trocados no grupo, em permitir uma adequação da fala ao fato. O que significa, no caso presente que nos interessa, permitir uma modificação dos usos possíveis e da norma do que deve significar a palavra “uso”. O que devia, segundo Guattari, conduzir a uma transformação do inconsciente dos psiquiatras pode também levar, esperamos, a uma modificação do inconsciente daqueles que fazem a Web. O objetivo não é senão uma redefinição do que é a Internet (que é originalmente um espaço de troca, de inspiração científica/libertária, mais que a ferramenta militar que alguns gostam de apresentar): uma extensão do processo dos grupos-sujeitos, contra todos os modelos. Quer dizer, na própria Web, o que Bernard Stiegler chama a troca do modelo consumidor por um processo contributivo. O objetivo deve, então, ser aquele de um mundo open source. A guerra pela liberação dos datas que começa a se exasperar não é senão uma das premissas de uma luta que se anuncia violenta.
Insistamos sobre essas duas operações ontogenéticas-comunicacionais. As diversas formações de Poder (“grupos-sintomas”, diria Guattari) desdobram a operação midiática que nada é senão uma resposta a um Acontecimento mais primordial. Trata-se da disposição do pensamento diante do caos, diante da abertura da experiência que o expõe ao fora, ao imprevisível, ao novo. Se entendermos o termo “crítica” segundo um de seus sentidos etimológicos, como uma intervenção no momento de uma crise vital, então midiação e imidiação consistem em dois tipos de “performances especulativas” (Brian Holmes), duas disposições crítico-vitais, intervindo no instante desse pavor diante do abismo, mobilizando diferentes tipos de forças a cada vez, e que engaja modos de pensar, de viver, de sentir, de perceber, de agir completamente diferentes (ek-sistere), ao ponto de devermos falar em duas humanidades diversas. Trata-se de dois modos de comunicação dessemelhantes: não duas alternativas, mas duas relações diversas com o que nos altera sem cessar, mostrando que o problema do pensar e sua gênese engaja, apesar de um certo deleuzismo, um problema comunicacional que é preciso explorar, inclusive a partir de Deleuze.
A filosofia é atravessada por esse acontecimento arcaico quando ela coloca a cada vez o problema da relação à diferença, ao fora, à exterioridade. A depuração da Razão em oposição ao seu Outro, o Erro, a Ilusão, o Sonho, a Loucura, a Natureza, a Máquina, deve ser compreendida a partir desse acontecimento comunicacional, como o desenvolvimento de uma performance especulativa midiática e do espaço extensivo que ela implica: uma distribuição sedentária-hierarquizante dos seres, dos sujeitos, dos lugares, das funções exercidas por esses sujeitos, segundo midiações cada vez mais complexas (estratos); o acordo das relações entre a imaginação, o corpo, a sexualidade, a sociabilidade, a sensibilidade, etc., em vista da fixação de um mundo estável, homogêneo e sólido. Esta performance se exprime no problema fundamental da reflexão filosófica clássica enquanto condução do múltiplo ao Uno. Quando Bento Prado Júnior mostra o esforço de Kant para despsicologizar o Cogito cartesiano, de Wittgenstein para gramaticalizar o Cogito Kantiano, da fenomenologia para explicar a limitação do Eu através do encontro com o Outro, deve-se ver ai uma depuração cada vez maior da razão cujo objetivo é aquele de defini-la sempre em relação com o seu Outro como sendo um outro Si mesmo. Comunica-se, mas a comunicação midiática é a operação pela qual eu não comunico senão com o meu “outro”, sem que seja preciso passar pelo caos, experimentar a abertura ao fora, devir propriamente outro, alterar-se.
Só me interessa o que não é meu, assim exprimia Oswald Andrade esse cogito-canibal que a antropologia de Eduardo Viveiros de Castro, sob o signo de uma “descolonização permanente do pensamento”, saberá opor ao cogito-narcísico na história da filosofia. Aquele primeiro resulta de uma performance especulativa propriamente imidiática posto que realiza a abertura de um espaço intensivo, no qual os seres múltiplos são efeitos de modificações incessantes de uma diferença que os atravessa e os desdobra: uma distribuição nomádica-anarquizante dos seres que são devires ou singularidades pré-individuais e que se põem a ressoar uns com os outros segundo suas potências de afetar e de ser afetado imediatamente. As práticas pelas quais nós contraímos relações com os corpos, a sexualidade, a imaginação, etc., formam um processo que instaura mundos cada vez mais diversificados, segundo uma variação contínua e uma criação ininterrupta de novidade.
É possível caracterizar essas duas performances especulativas, a partir de uma leitura (que tememos ser demasiado grosseira) do primeiro capítulo do livro Matéria e memória de Henri Bergson. Primeiramente, ali encontramos uma concepção que opõe representação e presença, pensamento e coisa, matéria (quantitativo, extensivo) e espírito (qualitativo, inextenso), de tal maneira que se concebe um “aparelho especial”, reunindo “o órgão da percepção”, a “substância cerebral”, para constituir “por não sei qual processo de elaboração químico e psíquico” uma vista fotográfica das coisas, uma luz que ilumina por eu não sei qual processo misterioso as coisas opacas, uma visada midiática que, tal como uma “varinha mágica”, faz surgir, “a maneira de algo absolutamente novo a representação disso que se tinha posto inicialmente”, a saber, o conjunto do mundo material. O toque de varinha midiático acrescenta misteriosamente um mais (plus) à percepção para fazer nascer a representação, o conhecimento. Esse mais (plus) constitui justamente o fundo sólido e estável sobre o qual o mundo da representação edificar-se-á, pondo-se na medida em que se opõe a algo (seu outro). Essa performance especulativa, que está na origem das “ ilusões da metafísica”, mas também, diríamos com Viveiros de Castro, dos fundamentos colonialistas da metafísica e, com Pierre Clastres, da divisão no socius e, por conseqüência, da introdução da Necessidade e da Propriedade (emergência do Estado), constitui um Comum que se partilha na medida em que se opõe (exigindo assim a emergência do Direito). A ela Bergson opõe uma outra performance que nos parece bem isso que chamamos aqui de imidiação. De acordo com essa performance, os corpos e objetos são imagens, o cérebro é imagem, a percepção é ainda imagem e cada imagem exprime imediatamente a totalidade material do universo determinada como conjunto (meta)instável de imagens, a receber e transmitir movimentos em cada um de seus pontos. Bergson nos ensina que, desde que se coloca o mundo material, a percepção não é como um holofote a iluminar as coisas opacas exteriores, mas está disseminada nas próprias coisas, que são por si mesmas luminosas. Não há nada que se acrescente a elas do exterior, não há senão imagens-movimento. A percepção é uma ação virtual desenhada nas coisas em suas múltiplas janelas das quais uma ou outra pode ser acessada a cada vez em função do que interessa ao corpo. O corpo é um intervalo que recebe movimento e devolve movimento, em função de uma ação que lhe interessa sobre as imagens. Assim, renuncia-se ao toque de varinha midiática e toma-se o corpo como uma imagem conectada à totalidade das imagens, de tal maneira que a delimitação da percepção disseminada nas coisas, em função do que interessa a um “centro de indeterminação”, que é justamente cada corpo, constitui uma performance especulativa imidiática que faz variar todas as outras imagens em torno, a maneira de um caleidoscópio. Não há mais um fundo para se preencher, mas processos de individuação pelos quais o mundo das imagens se delimita a cada vez em uma experiência sempre renovada, consistente e aberta que se realiza nos intervalos em suas redes múltiplas, segundo a perspectiva que constitui cada corpo singular sobre a superfície ilimitada do campo de imanência das imagens: Comum aqui significa a incomensurabilidade de elementos incompossíveis, disparates, transversais surgindo incessantemente de um sem-fundo de desigualdade, de diferença de potencial, de disparação (Simondon)3. Cada corpo, seja ele orgânico ou inorgânico, coisa ou objeto, é uma imagem-viva, uma perspectiva, uma pessoa que se individua seguindo a individuação de um campo pré-individual no qual ele está mergulhado. A performance especulativa imidiática exprime diretamente o perspectivismo disseminado no universo material, que é um plano multinatural, pois cada corpo ou conjunto de corpos forma uma natureza, um mundo singular (Simondon-Viveiros de Castro).
Dito isso, observa-se tanto nas novas tecnologias quanto na metafísica, como em outras práticas da vida, a realização de uma mesma performance especulativa midiática: elas são, propriamente falando, mídias. No que se refere à Web, por exemplo, ela está presente justamente nas formações de poder que reconstituem velhas territorialidades fundadas na relação narcísica Eu-Outro. A Internet é um medium global, mas ela entra em agenciamentos midiáticos que a cercam em torno do Eu: as futilidades cotidianas, os particularismo regionais, nacionais, lingüísticos, enquanto ilhas afetivamente desertificadas (o que se passa, por ex., no ciberespaço sul-coreano, nigeriano, boliviano, no asiático, no europeu ou no caribenho?). Um estudo realizado sobre a relação de adolescentes com as redes sociais por Danah Boyd e Alice Marwick para a Microsoft Research o mostra, mesmo se elas não tiram daí boas conclusões – posto que elas trabalham para a Microsoft Research. Segundo esse trabalho, o que é freqüentemente considerado, com certa ingenuidade, como um desaparecimento da vida privada em uma super-exposição narcísica não é em realidade senão uma recomposição de um espaço privado do qual se espera que os adultos permaneçam afastados. Não se expõe senão com o intuito de reivindicar esse direito à privacy. Assiste-se a uma reconstrução paródica, mas sem subversão, do esquema familiarista, com a subtração do olhar parental como única regra. Da mesma maneira a defesa zuckerberguiana da redução da privacy não faz senão um rearranjamento das territorialidades velhas através de novos meios – a polêmica Frictionless Sharing.
Qual seria então, o verdadeiro combate político da Web 2.0? De acordo com o que acabamos de dizer, ele deve ser conduzido no plano das performances especulativas. A resistência, a invenção de novas estratégias de combate passa por essa ruptura entre diferentes regimes comunicacionais. Parece que, mais do que nunca, é preciso acabar com o respeito à vida privada, o que não se faz forçosamente através somente do dispositivo tecnológico, mas rompendo a performance especulativa narcísica e liberando a vida lá onde ela é aprisionada em nossa contemporaneidade: a bolha desertificada, a tela insensível desses “eu” refletidos, as colméias homogeneizantes das corporações que multiplicam as formas de controle, mas que não fazem senão estender, através das novas tecnologias, a performance especulativa que fazia da metafísica ocidental uma fina operação midiática. Não é mais a intimidade que está em jogo aqui, mas a extimidade, como sugere a antropóloga argentina Paula Sibilia, esse narcisismo que tem necessidade do outro enquanto tela de projeção de si mesmo, constituindo um espaço cada vez mais partilhado e partilhável, que demanda por um Direito mundial da Web4.
A verdadeira ruptura não é possível senão através da afirmação de uma terra incognita jamais partilhada ou partilhável do ponto de vista da midiação, lá onde não se pode mais dizer Eu, onde não se tem mais uma identidade como fundamento ou onde modos de vida singulares podem ser criados, eventualmente enquanto máquinas a serviço da guerra da Internet. Assim, a comunidade de hackers Anonymous poderia bem figurar como a vanguarda desse movimento de transformação transindividuacional. De uma parte, porque ela reúne todas as características do grupo-sujeito, e que ela reivindica a designação de grupo. E de outra parte, para citar um jornalista, porque: “Anonymous é a primeira superconsciência construída graças à Internet. Anonymous é um grupo semelhante a um bando de pássaros. Como saber que se trata de um grupo? Porque eles viajam na mesma direção. A todo momento, pássaros podem se juntar ou deixar o grupo, ou ir em uma direção totalmente diversa da deste último”. Ator essencial e emblemático da luta do imidiático contra o midiático, Anonymous é um grupo cuja ausência de estrutura solidificada é intrinsecamente molecular e cujo objetivo é a derrubada de sites de Estados liberticidas, de multinacionais, etc. Desse modo, o devir radicalmente outro, a dissolução intensiva de todo traço extensivo do “Eu” sob o signo da alteração torna-se a condição de possibilidade da própria luta.
Uma Terra-nunca-de-alguém, espaço aberto composto de singularidades livres a criar novos agenciamentos espaço-temporais. Essa terra incognita implica igualmente a dissolução da oposição público/privado, dessa vez não em nome da exibição que me liga ainda mais firmemente a todos esses mil “meus outros”, mas quebrando a Consciência como tela midiática arcaica e sua lógica estatal do Allos autos, é um outro outro que não o “meu outro” que emerge, um devir-outro que nos carrega, nos destitui do poder de dizer Eu e instaura, por assim dizer, uma situação comunicacional que se constitui em torno de uma quarta pessoa do singular. O agenciamento imidiático é uma cartografia criadora de estratégias de formações de desejo no campo social, atravessando as práticas múltiplas pelas quais o tecido da vida se tece, recortando-as e as rearticulando transversalmente, deixando exprimir os signos ou imagens emitidos pelo caos, como tantas perspectivas, naturezas, mundos possíveis. O pavor mais primordial não pode ser conjurado senão a força de criação. Como mostrou Bento Prado Jr, tanto Deleuze e Guattari quanto Wittgenstein estavam de acordo nesse ponto: é preciso mergulhar no caos e dele retornar ou nele se sentir bem para se poder conjurá-lo, sem se solidificar nas opiniões ou clichês para dele se proteger. As duas performances especulativas lutam como duas línguas que não coincidem jamais, a maneira de duas respostas irredutíveis a um mesmo problema, as quais, desde então, divide, para retomar as palavras precisas de Bento Prado Jr a propósito de Pierre Clastres, o “nosso Planeta” em dois “mundos”, em duas humanidades incomunicáveis5.
Transversalidade, canibalismo e revoluções imidiáticas
Oswald de Andrade, que falou de uma Revolução Caraíba (canibalismo) maior que a Revolução Francesa (fraternidade), ao afirmar as duas linhas ontogenéticas constituídas pelo Matriarcado (Primitivo) e pelo Patriarcado (Civilizado), parece ter colocado com precisão o problema desses dois “mundos”, de que fala Bento, e das performances especulativas que os instauram (“Weltanschauung”): o Messianismo (midiático) e a Antropofagia (imidiática).
Com efeito, o canibalismo, compreendido no sentido preciso dado por Lévi-Strauss e segundo o qual somos “todos canibais”, ou seja, entendido como assimilação da substância do outro, implica a transversalidade como apropriação imanente de elementos/alimentos heteróclitos: a melhor maneira de se identificar o outro a si mesmo é ainda o de comê-lo. O liame social não é mais, nesse caso, a fraternidade e a oposição num socius atravessado pela “divisão”, mas a diferença como relação característica de uma “sociedade indivisa” (Cf. Bento Prado Jr) ou que não se divide se mudar de natureza: uma metamorfose ambulante. Oswald é vítima de uma incompreensão quando se reduz seu pensamento a uma antropofagia meramente metafórica (cultural), como se a experiência simbólica não se compreendesse imediatamente no conjunto da vida (das imagens-vivas em Bergson). Como sugere o antropólogo Philippe Descola, mesmo literal o canibalismo ainda é uma experiência simbólica. Acrescentaríamos somente que, sendo simbólico, o canibalismo não pode ser senão uma experiência que concerne à literalidade da própria vida compreendida como devoração. Com efeito, a concepção de Oswald fazia da “devoração” a própria literalidade da vida como interpenetração, comunicação intensiva e disparatada de singularidades.
Não é por acaso, então, que essa performance especulativa radicalmente imanentista, esse plano de devoração vital, que caracteriza tanto o pensamento canibal de Oswald quanto a prática transversalista de Guattari, seja retomada por Viveiros de Castro a partir de suas pesquisas junto aos ameríndios. Com efeito, para ele, seria preciso falar em uma metafísica canibal para nomear a criação de conceitos própria ao modo de imaginação dos ameríndios, pois, ao adotar o ponto de vista do inimigo como elemento indispensável para a constituição de si mesmo, esses povos instauram uma imaginação conceitual pronta a esposar os mundos possíveis envolvidos por outrem enquanto imagem-viva ou perspectiva. Talvez tenhamos aqui, nessa imaginação conceitual em continuidade com a experiência de pensar transversalista, uma pista para compreender o que um pajé Kaiapó pôde dizer a propósito das tecnologias tal como seu povo as vê: “Fomos nós que inventamos toda essa tecnologia que vocês possuem, mas não quisemos desenvolvê-la”. Uma compreensão possível dessa fala consiste em dizer que esses povos não tinham necessidade de desenvolvê-la posto que diversas de suas práticas já eram compreendidas num agenciamento imidiático que as envolvia, por ex., o xamanismo (Simondon considerava o xamã como um tecnólogo)6 ou exocanibalismo guerreiro. “A religião tupinambá, enraizada no complexo do exocanibalismo guerreiro, projetava uma forma onde o socius se constituía na relação ao outro, onde a incorporação do outro dependia de um sair para fora de si – o exterior estava em processo constante de interiorização e o interior era mais que o movimento rumo ao fora. Essa topologia não compreendia nenhuma totalidade, não supunha nenhuma mônada ou bolha identitária a investir de maneira obsessiva nas suas fronteiras e a fazer uso do exterior como um espelho diacrítico de uma coincidência consigo mesmo”7. Ou seja, eles dispensam a tela midiática e se eles possuem uma outra metafísica, justamente canibal, é em razão dessa existência, ou antes, dessa transistência em que consistia sua relação ao outro, seu agenciamento transindividuacional. Razão pela qual a performance imidiática implica uma verdadeira descolonização do pensamento, pois a Metafísica ocidental constitui a fons et origo de todo colonialismo, precisamente por ter a midiação como agenciamento. A transversalidade (ou imidiação como aquilo que Deleuze e Guattari chamaram de “lógica do E”) e o canibalismo constituem a subversão de toda Ontologia, rompendo com a performance midiática. Como diz Viveiros, para os Tupis “o outro não era um espelho, mas um destino”, “o interior e a identidade eram hierarquicamente subordinados à exterioridade e à diferença”, “o devir e a relação prevaleciam sobre o ser e a substância”8.
Nesse sentido, nada impede de pensar os agenciamentos emancipatórios que tomam posse da Web 2.0, como vimos no mundo árabe, na Espanha, em Wall Street, com o Wikileaks, com Anonymous, como um movimento de indigenização do Ocidente. A Terra, a grande “desterritorializada e desterritorializante”9, plano de imanência folhetado, torna-se (devir) multimundialista, o Uno-Todo aberto que faz mundo. Lévi-Strauss dizia, e Viveiros de Castro insiste nisso, que a globalização não significava a universalização do Ocidente e o desaparecimento das diferenças sem que, ao mesmo tempo, a civilização ocidental torne-se (devir) um todo aberto atravessado por diferenças internas, intensivas que o diferenciam continuamente.
Marshall Mcluhan pode ser lido, a partir de algumas torsões, nesse sentido, quando trata de algo da ordem de um devir-índio do mundo ao criar o conceito de “aldeia global” para caracterizar o mundo interconectado pelas novas tecnologias enquanto extensões do pensamento, dos sentidos, de um corpo expandido. Ao contrário da fragmentação, da linearidade e da individualidade que caracterizaram a época ultrapassada, informada pela imprensa e a escrita (a galáxia de Gutemberg), as máquinas eletrônicas implicam uma simultaneidade, um campo de experiência indiviso próprios ao pensamento dos povos nativos. Esse pensamento tem como uma de suas componentes, na cosmopolítica ameríndia, a imanência do inimigo, a devoração do inimigo sagrado. A questão é, portanto, de matar, na Internet, um certo modelo herdado de esquemas ultrapassados como o Estado-nação e seu Direito ou a relação produtor-consumidor, de fazer o ritual fúnebre e os introjetar, como dizem Niclas Abraham e Maria Torok: ou seja, devorar seu cadáver cujos órgãos são suas bases de dados, fazer deles uma região móvel de um Eu tornado multiplicidade, um povo, uma legião indivisa. Wikileaks e Anonymous são exemplos dessas potências imidiáticas: a hemorragia dos datas da diplomacia midiática, midiatizada, midiatizante do Poder, deve conduzir à sua morte. Assim, a operação imidiática, a tomada de posse dos datas atualiza na Web o Direito Antropofágico oswaldiano, tal como sugere Alexandre Nodari ao pensar “a posse contra a propriedade”10. Como já sugeria a idéia do advento do “bárbaro tecnizado”. Se o homem é mídia, então a morte de Deus é, ao mesmo tempo, morte do homem, de uma humanidade. É preciso, numa profunda inspiração artauldiana11, acabar de vez com o juízo Midiático para se poder colocar de vez o problema da comunicação.
1 Cf. Eduardo Viveiros de Castro, Antropologia e imaginação da indisciplinaridade, in http://www.youtube.com/watch?v=ry1ykrRVqYk e a filosofia como prática de ressonâncias cf. François Zourabichvili, Les deux pensées de Deleuze et Negri, in http://multitudes.samizdat.net/Les-deux-pensees-de-Deleuze-et-de .
2 Cf. Jacques Rancière, A partilha do sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo:
EXO Experimental / Editora 34, 2005.
3 Para essa concepção de um comum-sem-comunicação-(midiática) que implica uma comunicação-(imidiática) entre séries incompossíveis a partir de Deleuze e Simondon, sua novidade política com fortes implicações para a concepção de Comum em Negri e Hardt, ver Alberto Toscano, La disparation, http://multitudes.samizdat.net/La-disparation#nh8 .
4 Cf. Sugeriu recentemente, na França, o diretor de redação do Express, Christophe Barbier, contra Anonymous: “é preciso dizer a esses anônimos (…) que eles não estão ai pela liberdade da imprensa, liberdade de expressão ou liberdade do futuro. Estão ai simplesmente como ladrões anônimos – vocês são ladrões! (…) A República pegara vocês! Ah, mas isso já era… Porém, um dia, haverá um direito mundial da Web, haverá para todo mundo liberdade, mas também deveres, remuneração para quem trabalha, sobretudo artistas. Isso acabara com os Anonymous, eles deverão deixar a mascara cair”.
5 Cf. “Pierrre Clastres”, Alguns Ensaios, Filosofia, Literatura, Psicanálise. Ed. Paz e Terra, 200. Remetemos também ao artigo “Os ambientalistas são reacionários ou revolucionários?” publicado no site da Fórum in http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/01/07/ecologistas-sao-reacionarios-ou-revolucionarios-por-cleber-lambert/ . Para o que se segue, ver o igualmente o livro de Giuseppe Cocco, MundoBraz, o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo. Ed. Reccord, 2009.
6 Cf. “Demasiadamente pós-humano”, entrevista com Laymert Garcia dos Santos, 2005 in http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010133002005000200009&script=sci_arttext#tx09
10 Cf. “A posse contra a propriedade”: a pedra de toque do Direito Antropofágico in http://www.scribd.com/doc/38140929/a-posse-contra-a-propriedade-pedra-de-toque-do-Direito-Antropofagico