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O panelaço no Morro dos Cabritos

Por Alexandre Fabiano Mendes, professor de direito da UERJ e participante do Círculo de cidadania / Rio de Janeiro

panelas

Concentrado em muitas atividades, e um pouco saturado pelas “análises de conjuntura”, eu já tinha certeza que não faria qualquer comentário sobre as manifestações do dia 15 de março. Decisão tomada, tendo acabado de retornar do trabalho, no day after das dezenas de atos em todo Brasil, entrou pela minha janela um ruído poderoso de panelas, gritos, vaias e xingamentos. Moro em Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro, mas o barulho não vinha dos prédios no “asfalto”: chegava exclusivamente de dezenas de pequenas janelas e espaçosas lajes do conhecido Morro dos Cabritos, favela cuja origem remonta à imigração nordestina que desbravou o bairro, em 1926.

O ruído, que perdurou com sincronia o pronunciamento da presidenta Dilma no Jornal Nacional, não era poderoso apenas por sua sonoridade particular (nunca tinha, de fato, escutado um panelaço – o som cresce aos poucos, cheio de saltos e tropeços, e logo domina o ambiente), mas pelas interrogações e curtos-circuitos que gerava diante dos textos, análises, deboches e imagens com que tive contato ao longo do dia, através das redes sociais. E também, diga-se de passagem, pela própria leitura confortável e redentora que, aliás, eu mesmo vinha sustentando nos dias anteriores: “uma manifestação típica da corporativa elite branca brasileira e sem nenhum contato com outras classes sociais”.

O desconfortável panelaço do Morro dos Cabritos demonstra que existe um tipo de análise que, dia após dia, se acumula numa verdadeira crosta – sem memória e sem fim – de equívocos e desacertos de abordagem ou, nos piores casos, em simples propaganda política do atual governo, custe o que custar.  O “princípio da acumulação”, que Deleuze utilizou para explicar a atividade da imprensa e da mídia em um caso notório do final dos anos 1970, transformou-se no principal motor de uma parte considerável das leituras de conjuntura (de todos os tipos, incluindo posts e tweets que se espalham nas redes) que, não por acaso, são perfeitamente simétricas às realizadas pelos jornalistas das grandes empresas de comunicação. Em ambos os casos, é possível “realizar uma acumulação de tudo que é dito, de um dia para o outro, sem temer qualquer contradição” (Deleuze, 1979).

Muitas tentativas, felizmente, podem ser realizadas para recuperarmos a nossa capacidade de ação e reflexão, apesar dos entulhos vindos diariamente do depósito duplo-midiático. Neste texto, vou enumerar alguns passos que considero fundamentais para ultrapassarmos as “análises da casta”, isto é, aquelas afirmações que diariamente tentam nos deixar conformistas, sem imaginação, inativos e espremidos entre duas manipulações internas às disputas de duas oligarquias político-econômicas que se formaram a partir do Regime de 1988 (PSDB e o último PT), com o cimento permanente do pemedebismo. O objetivo é não apenas compreender melhor o panelaço dos Cabritos, como também explorar as possibilidades de construção de alternativas políticas que escapem à polarização. Vamos aos pontos:

a) Vencer o medo.

Todos os dias nos dizem: “vocês não podem!” Não podemos nos indignar, não podemos criar alternativas, não podemos dizer que a polarização é falsa e que queremos pensar e protestar com autonomia. Sem mobilizar todas as nossas potencialidades corporais, afetivas e cognitivas, nos deixamos representar por uma força inteiramente externa à nossa e somos paralisados pelo medo. De um lado, pretendem disciplinar a nossa indignação submetendo-a a estéticas e fórmulas preconcebidas (aumentos de pena para a corrupção, diminuição da maioridade penal, estímulo à repressão, reforma política discutida intramuros, uso domesticado das ruas, retórica nacionalista etc); de outro, querem nos empurrar para atos de apoio ao governo convocados para evitar um suposto “golpe da direita” ou uma “intervenção militar” orquestrada pela CIA (por coincidência, a defesa da “democracia” é simbolizada por centenas de bandeiras da Dilma, do PT e de outros partidos do governo). Chega! Queremos construir alternativas e pensar para além da dupla-manipulação que nos exclui do direito de fazer política.

b) Ter algo a dizer.

Há algum tempo, alguns filósofos já constatavam que “as forças repressivas não impedem as pessoas de se exprimir, ao contrário, elas as forçam a se exprimir” (Deleuze, 1992, Negri & Hardt, 2012). O “homem mediatizado” não é apenas aquele que tem sua palavra sequestrada pelos conglomerados de mídia, mas aquele que é instado a falar o tempo todo. Desde o estelionato eleitoral de 2014, observamos as redes sociais inundadas por informações mortas e fabricadas, compartilhadas à exaustão pela máquina de propaganda da casta, e que acabam por impedir que uma comunicação viva e potente se estabeleça. Por um lado, “memes” grotescos que ridicularizam qualquer pauta de ampliação dos direitos de cidadania, por outro, a mesma grosseria e soberba aplicada a qualquer um que se indigne contra o governo. Precisamos resgatar o poder do silêncio que, nesse caso, significa construir uma linha de fuga das máquinas de propaganda que dominam as redes. Não defender uma saída nostálgica das pessoas das redes de comunicação, mas “arranjar-lhes vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais elas teriam, enfim, algo a dizer” (Deleuze apud Negri & Hardt, 2012).

c) Perceber o que desliza.

Nenhuma estratégia política é capaz de agrupar e ordenar perfeitamente todos os sujeitos. Sempre há algo que desliza e escapa. Assim, como no dia 13 de março é possível vislumbrar aqueles que ousaram deslizar de suas organizações disciplinares e pelegas, no dia 15 de março somos capazes de encontrar pessoas que desejam ampliar direitos através da indignação contra o governo. Afinal, seria bastante improvável acreditar que um milhão de pessoas em São Paulo são extremistas de direita. O cartaz, em verde e amarelo, que pedia mais bolsa-família percorreu as redes para demonstrar que existe uma diagonal que foge à polarização da casta. Um recente vídeo gravado na Av. Paulista mostrava jovens que se assumiam proletários “de esquerda”. Pesquisas realizadas nos atos mostram que uma parte dos indignados é favorável ao aborto, reforma política e contrária a qualquer discriminação contra gays e lésbicas. Outros levantavam bandeiras por direitos sociais, como saúde e educação. Será que é impossível fazer politica com essas pessoas?

d) Disputar a cidadania.

Na direção contrária do desprezo governista, precisamos reconhecer que pelo menos uma parte dos movimentos que entrou em cena no dia 15 soube definir um terreno cada vez mais adequado de ação política: a disputa por cidadania. Apresentando-se como um movimento “cívico” organizado pela própria população, com o afastamento real de políticos tradicionais do carro de som e a condenação das pautas mais radicais e ultraconservadoras, parte do movimento ocupou um espaço cada vez mais abandonado pela esquerda brasileira: o desafio de construir uma plataforma cidadã e de fazer políticas diretamente com as pessoas. O caráter apartidário, por exemplo, foi ironizado nas redes pelo deputado Marcelo Freixo, potencial liderança política que tem preferido divulgar propaganda governista a apresentar-se como alternativa real e viável para os indignados. Erro grave, que demonstra como a tradição socialista ainda precisa compreender as novas formas de organização política que se articulam entre as redes e as ruas, como demonstraram as Jornadas de Junho de 2013. Para que “o movimento cívico” não termine por representar uma redução das nossas potencialidades democráticas, é preciso que nós assumamos o terreno que está dado e compreendamos o que significa as novas experiências políticas baseadas nas plataformas cidadãs. As condenações sumárias lançam o campo de esquerda para fora dessa disputa, condenando-o à lógica dos aparelhos e das formas pré-fabricadas de (in)ação. Disputar a cidadania é disputar as maneiras de organização democrática da indignação, é entender, como afirmou recentemente um professor espanhol, que os governos não temem as esquerdas, o que ele teme são as pessoas.

e) Construir comunicação.

O homem e a mulher “mediatizados” são efeito de uma comunicação morta que não cria linguagem, mas apenas reproduz e alimenta o depósito de erros, ironias pedantes e grosserias advindas da polarização da casta. Ao vencer o medo, ao perceber tudo que pode deslizar, ao criar uma camada de silêncio que nos protege dos signos mortos (leia-se: não compartilhar “memes” fast food de propaganda política), ao fazer política com as pessoas por meio de múltiplas redes de cidadania, um novo terreno de troca de pontos de vista pode ser estabelecido. Ele demanda para a esquerda um esforço verdadeiramente “cultural”: construir discursos que possam circular, comunicar e produzir novas relações. “Amarildo” não seria um desses signos vivos carregados de sentidos que produziu uma linguagem comum no contexto das Jornadas de Junho? Quais outros poderemos criar no contexto atual de extrema indignação?

f) Abraçar o que não é seu.

Explorar o terreno político atual, por fora das polarizações pré-formatadas, significa abrir-se para novos e inesperados encontros. É preciso reconhecer que boa parte da cultura de esquerda é alimentada por um infinito “poder pastoral” (Foucault, 1977) que regula, fiscaliza e determina qual é a melhor conduta a ser seguida em cada momento. A rebeldia é punida com sarcasmo, olhares desconfiados e ostracismo (“Fulano descambou para a direita”). Infelizmente, uma das consequências da repressão e do estelionato eleitoral de 2014 foi a fuga para zonas de conforto ativista (identidades) ou uma total adesão às redes de propaganda governista. Para que a agenda de ampliação de direitos não seja completamente varrida do mapa, como um sopro que afasta partículas minúsculas de algum lugar, é preciso sair do casulo dos grupos e disputar os sentidos da justa indignação que se alastra pelo país. Não há nada de novo na proposta: fizemos isso em 2013 e conseguimos compartilhar bons sentidos e desejos com relação ao aprofundamento da democracia.

g) Entender as ruas, construir os sentidos.

Em 2015, o horizonte das ruas tornou-se bem mais dificultoso em razão da repressão orquestrada pelo governo e por grandes empresários contra as Jornadas de Junho, bem como com a chantagem simbólica e política alimentada pela falsa polarização. As ruas foram completamente depuradas dos elementos fortes que conferiam um sentido explicitamente voltado para a radicalização democrática. Poderíamos dizer que o governo federal esticou o tapete vermelho para que os elementos mais conservadores da indignação pudessem desfilar. Sobraram três alternativas: abandonar as ruas organizando eventos paralelos e de pequena escala, ir aos atos organizados por entidades totalmente vinculadas ao governo para defender o indefensável e ser varrido do mapa político (com toda a razão), ou buscar uma disputa de sentidos no terreno da indignação concentrada no “Fora Dilma”. Uma boa demonstração da terceira opção ocorreu com o ato pela memória de Claudia, assassinada pela polícia militar, e com as pessoas que foram aos atos com cartazes por ampliação de direitos, ambos no dia 15 de março. Como lançar-se na indignação espalhando forças de ampliação dos direitos e da democracia? Uma coisa é certa: o horizonte está dado e o desafio é, a partir dele, superar o regime da falsa polarização de castas políticas com o aprofundamento da democracia e da cidadania, reconhecendo que a alternativa não está em nenhum dos lados dessas castas.

h) Compreender as tendências.

Acabo de ler um texto de um professor de política da USP, que chega a conclusões tranquilizantes sobre o dia 15 de março a partir de uma análise “sociológica”, determinando que as manifestações possuem um perfil específico, reservado à classe média e alta brasileira. Qual o problema dessas análises? Elas esquecem um elemento, tão caro a uma certa filosofia política do século retrasado, que seria justamente o coração de uma boa leitura da conjuntura política: o problema de encontrar a tendência dos acontecimentos, aqueles “traços” deixados pelo teatro das forças da história, nos dizeres de Nietzsche. A questão, portanto, não é descrever uma fotografia, mas encontrar a imagem-tempo de um movimento. A manifestação do dia 15, além de contar com a participação, ainda que minoritária, de outras classes sociais, pode estar comunicando um movimento de forma difusa e ingovernável. Ela tem um potencial que não deve ser, de forma alguma, menosprezado: abraçar a crescente indignação que atravessa as pessoas, e que vai se aprofundar nos próximos anos. Seria ruim que os protestos se generalizassem no sentido de uma ampla participação da sociedade? Claro que não! Pelo contrário, a generalização da participação é a oportunidade mais rica para criarmos um amplo repertório de sentidos políticos para além do autoritarismo e da manipulação da casta (política e midiática).

Voltando ao panelaço inesperado dos Cabritos

Dito tudo isso, posso voltar ao dia 16 de março no Morro dos Cabritos. Ele permitiu, mais uma vez, demonstrar a falsidade das análises que desejam restringir a indignação às elites brasileiras e à classe média. Pensando melhor, relembrando todo o trabalho que tenho feito desde 2007, no acompanhamento das políticas para as favelas, seria curioso se não houvesse qualquer tipo de indignação. Em vários textos e atividades públicas, já demonstramos que o PT comandou diretamente uma série de violações diretas ao direito de moradia nas favelas, organizou, através da Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo Federal, um programa de cobrança pelos serviços prestados (energia elétrica, por exemplo), que se transformou numa verdadeira extorsão empresarial, comprometendo a renda de milhares de trabalhadores. O mesmo governo está, nesse momento, insistindo na remoção do Horto Florestal e possibilitando, através do PMCMV, a remoção da Vila Autódromo, por exigência do mercado imobiliário.

Como a mesma determinação, sustenta uma ocupação militar no complexo da Maré, que transformou o território num campo de exclusão de todos os direitos da cidadania. Em sua participação na Prefeitura do Rio, além das remoções, promove uma repressão aos garis e foi responsável pelo vergonhoso programa de internação compulsória de usuários de drogas. No campo econômico defende um ajuste fiscal que prejudica pescadores e desempregados, um ano após ter gastado bilhões de reais em estádios de futebol superfaturados. A crise federal encontra um correlato no plano estadual, com o contingenciamento das verbas de todas as secretarias e o covarde calote aplicado nos trabalhadores terceirizados de várias instituições públicas.

Com tudo isso, seria infame lamentarmos o vigoroso panelaço promovido no Morro dos Cabritos. Talvez seja melhor pensar no tipo de comunicação social que foi produzida a partir do dia 15 de março e imaginar que, ao contrário da lógica da casta, é melhor a participação de uma rede diversificada de indignados, com uma ampla possibilidade de sentidos políticos e novas reivindicações, que a manipulação oportunista da indignação através da propaganda polarizada. Nem o “impeachment” nem o “Fica Dilma”. Que linguagens podem ser criadas? O que poderíamos aprender com o novo conflito no Morro dos Cabritos?

 

Alexandre Fabiano Mendes é advogado e professor adjunto de direito na UERJ, mestre e doutor em direito, participa do NÓS/Círculo de cidadania e da rede Universidade Nômade.

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