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Rio violência: a era do cinismo

Por Ricardo Gomes, no Facebook

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Foto: Reynaldo Vasconcelos

“Nunca houve tráfico no Rio senão com a polícia como parceira, e frequentemente, como protagonista. Então não há essa distinção polícia/tráfico: polícia é o tráfico, o tráfico é a polícia” — Luiz Eduardo Soares, em entrevista.

O cinismo é a marca do capitalismo contemporâneo, disse certa vez Deleuze. Isso se aplica com muita correção aos discursos criados pela mídia em junção com a polícia militar, na noite de ontem.

Foi um protesto forte, pacífico e politicamente relevante, tanto pela rapidez com que foi chamado e respondido pela população, quanto pela situação absurdamente violenta em que foi articulado. A todo momento pipocavam denúncias de que moradores do complexo do Alemão não poderiam descer. Depois do protesto, o discurso dos poderes constituídos, arregimentado pela TV Globo em rede nacional, foi uma clara tentativa de legitimar a violência que vem acontecendo desde pelo menos o início do ano, e de quebra deslegitimar a possibilidade de protesto dos moradores.

Perguntada sobre as manifestações, a polícia dizia apoiá-las desde que fossem pacíficas, o que já se evidencia como uma mentira, dadas as denúncias feitas ao longo do ato, e dizia ainda que queria ver protesto contra traficantes, como se qualquer protesto contra a violência não fosse contra os dois, de uma só vez.

Vale lembrar que as UPPs não são políticas públicas de segurança, porque, ainda lembrando Luiz Eduardo Soares, não é possível fazer política de segurança com a polícia que temos hoje. Foi a UPP que matou 4 pessoas nos últimos dois dias no Alemão, incluindo uma criança de 10 anos, com um tiro na nuca.

As UPPs são projeto de dominação política e econômica da cidade. O local onde foram instaladas e a maneira como são geridas demonstram que elas são instrumentos de uma política econômica de venda e expropriação da cidade. Uma cidade onde a inclusão passa necessariamente pela obediência à ordem econômica e política. Perseguição aos trabalhadores informais, expropriação da cultura produzida pelas periferias e, ao mesmo tempo, a via sacra dos corpos marginalizados.

A destruição dos corpos que carregam a marca da diferença e que insistem, sem folclore, nessa marca, é eminente. O ódio e a perseguição são táticas implementadas pela poder, especialmente nas comunidades. Os relatos dos moradores deixam isso bem claro. Não basta matar uma criança de 10 anos, tem que desmoralizar a família que acabou de passar por essa violência, tem que plantar fotos falsas para legitimar a matança e alimentar o ódio moralista da sociedade.

Enfim, vivemos tempos cínicos. O cinismo da polícia que, numa ponta fortalece e desenvolve o tráfico, na outra deslegitima a revolta da população. O cinismo da mídia que mente, encobre e tenta pautar as manifestações com pressão para cima dos moradores, na defesa de uma suposta liberdade de expressão que só existe para essa própria mídia cínica. E o cinismo da sociedade que finge não ver nada, os números dos assassinatos, a idade dos assassinados, a forma como foram executados, nada. Prefere acreditar na primeira bobagem sem fundamento que lhe é  empurrada, como é o caso da redução da maioridade penal, das guerras as drogas e…

Em relação a esse estado de coisas não é possível esquecer a aliança total entre todas as instâncias dos poderes constituídos.

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