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Algo mais que passagem

Por Carlos Aberto Lungarzo

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A revolta contra o aumento das passagens mostrou, pela primeira vez na história do Brasil, que é possível que um movimento totalmente espontâneo (o movimento das Diretas Já! foi organizado), de grandes dimensões e absolutamente pacífico, se confronte com os interesses políticos e econômicos, a brutalidade policial e a insolência dos coronéis urbanos. Mas, tudo isso esteve potencializado no Estado de São Paulo.

O movimento é tão rico que é difícil saber onde começar a análise, mas algo já bem conhecido ficou agora irrefutavelmente demonstrado: sob o disfarce de uma democracia puramente retórica, São Paulo mostrou ser um estado que se comporta como se fosse um país, diante do embaraço do governo federal, mas também diante da repulsa da mídia internacional. Esta percebeu que os jornalistas, que mantém um laço de solidariedade muito forte no mundo todo, eram barbaramente massacrados por algozes, cujo sadismo só conseguia aumentar a indignação geral.

Também confirmou que São Paulo é um estado onde tudo o que é público está num destes dois casos: ou é para uso das elites, como as universidades, ou é tão ruim como o transporte, cujo descaso faz com que milhões de trabalhadores gastem sua vida e seu salário em longas esperas e longas viagens onde os passageiros são empilhados como caixas de bananas. Unido à história anterior de São Paulo (massacres urbanos, extermínio de moradores de rua, desocupações com extrema violência e desumanidade de habitantes de favelas cujos terrenos interessam para especulação imobiliária, racismo e discriminação com os mais pobres), isto prova que este estado-país, cuja capital conturbada tem mais de 19 milhões de habitantes, é dirigido por marionetes do Opus Dei, tem realmente traços fascista (e não em sentido metafórico, como usa muitas vezes a esquerda), porém implantado num país formalmente democrático. Se o Brasil e SP não fossem observados hoje desde o exterior como são, provavelmente essas atitudes seriam ainda piores.

É surpreendente a coesão, coragem e serenidade dos grupos populares que marcharam pacificamente e não se deixaram provocar quando os infiltrados pela polícia quebraram vidros de lojas e promovem violência e arruaças, tentando criar a ilusão de que o “vandalismo” parte dos populares. Ninguém acreditou nesse vandalismo, como o prova a mesma mídia conservadora, que também foi vitima dessa violência, e mostrou nas redes sociais da internet como manifestantes pacíficos eram atacados com balas, gases e pancadas e como a policia atirava bombas de gás, balas de borracha, batia, espancava e atingia especificamente os olhos de pessoas com spray. Pessoas foram violentamente reprimidas e presas e seu “crime” era protestar, algo que se faz em qualquer país, até nos estados islâmicos como o Egito, a Turquia e a Tunísia.

Os que tentaram acalmar os puppet leaders com a história do vandalismo fizeram um triste papel. Pela primeira vez no Brasil, Anistia Internacional levantou o tom de suas críticas, usualmente medrosas, para denunciar a desproporção das agressões policiais, mas também usou o termo “vandalismo”, para que ninguém se ofenda. A secretaria federal de DH criticou os excessos policiais, mas também disse que uma manifestação não poderia usar a “violência, perdidos sobre seu papel e com medo que as elites de São Paulo se melindrassem.

Será que estes dignitários federais que beiram os 50 anos nunca participaram de uma passeata em sua juventude? Será que nunca perceberam a infiltração? Sempre apareciam infiltrados a paisana, gritando: “Vamos, galera. Vamos quebrar tudo!” para criar clima de caos e justificar a repressão.

Triste o papel do MJ que ofereceu sua polícia “científica” para investigar os “instigadores”, mesmo sabendo que a única causa do levante foi a indignação dos agredidos por truculentos especialistas em tortura e morte. O Ministro, que o governo de SP se permitiu ainda humilhar, deveria entender que o “vandalismo” foi provocado pela doentia cúpula do governo estadual.

Lastimável a incapacidade do prefeito para ter uma reação própria. Com um mínimo de honestidade para com seu próprio passado de militante, deveria ter apoiado à juventude do PT que estava na passeata.

Qualquer espectador pode notar a diferença entre o que aconteceu em São Paulo e em outras cidades. O PT ainda tem alguns núcleos honestos e corajosos, que, embora estejam em apavorante minoria poderão ajudar a que o povo se sinta menos sozinho.

Há muitas lições para tirar dos protestos, mas duas são essenciais:

1.   Os milhões de pessoas que as elites tratam como lixo são capazes de formar manifestações espontâneas e confrontar os carrascos armados.

2.   A mídia do mundo começa a compreender a verdadeira realidade do país dos “mega-eventos”.

A luta não será fácil, mas, perdidas as esperanças na politicagem, as massas procuram novos e mais humanos caminhos. Talvez, algum dia, estas lutas produzam um país minimamente humano, mas tudo depende de que o combate possa ser continuado para outras causas.

Causas não faltam. O Brasil é hoje assaltado por uma gangue insana que pretende destruir a vida e a dignidade das mulheres. A luta contra o estatuto das morituras deve ser emendada com esta luta pelos transportes e, em cada pequeno passo que se avance, será obtida mais uma lição, já que só o conhecimento pode construir uma sociedade justa.

E, sobre tudo, deve aproveitar-se o fato que o planeta está sendo informado do que acontece na América Latina. As sociedades progrediram graças à coragem espontânea das sociedades civis, desde os escravos romanos do século I, até a recente primavera árabe. São esses grupos espontâneos, e não os líderes de qualquer índole que podem fazer nossos países civilizados.

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