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Notas sobre a cobertura da grande mídia e da manifestação do 17.06 no Rio de Janeiro

Engana-se terrivelmente quem pensa que para o exercício da democracia é necessário exilar, anular e extirpar o conflito. Engana-se ainda mais quem só vê conflito na hora que manifestantes entram em confronto com a polícia ou quando lançam sua indignação e revolta contra símbolos do poder. O conflito é a morada do exercício da democracia, sem o conflito – e o exercício da liberdade que sempre o acompanha – não há democracia, pois estaríamos todos condenamos ao marasmo e a imobilidade. O conflito é a linha que marca e atravessa os espaços onde são criados mundos novos e diferentes dos já configurados, o conflito é a força que alavanca as possibilidades da democracia fugir e ir além do poder da coerção e do capital.

A separação feita pela grande mídia entre manifestantes e vândalos é parte do jogo de tentativa de anulação do conflito enquanto liberdade e exercício da democracia, da mesma forma como a exigência, dessa mesma mídia, de que a multidão de manifestantes tenham reivindicações claras e unificadas. A anulação do conflito passa dessa forma tentando produzir duas grandes separações: uma é a produção do sentimento de que existe um movimento legítimo que busca a paz, enquanto uma minoria de baderneiros violentos se aproveitam para saquear lojas, atacar a polícia e depredar prédios públicos e históricos. A outra é que a grande maioria das pessoas que participaram da manifestação não sabe direito porque está ali, sendo necessário dessa forma a organização dos manifestantes em uma pauta única, ou seja transformar a multidão presente no 17 de junho em um monólito. A partir dessas duas grandes separações que a grande mídia opera o seu jogo clássico: julgando o bom e o mau e formando opinião. Separações que são a clara demostração da tentativa de golpe e captura da multidão. Multidão que de posse de um sentimento de autonomia das instituições constituídas e de pluralidade está ocupando progressivamente as cidades do Brasil, delineando em movimento os caminhos de uma nova democracia.

Com efeito a grande mídia não mostra e debate a verdadeira violência a qual somos, cotidianamente, expostos e que sentimos diretamente sobre nossos corpos. Não mostra que somos submetidos a viver de salário ou de projetos que nos precarizam, ou seja que a exploração é uma das maiores violências; que são ditadas de forma verticalizada políticas econômicas desenvolvimentistas; que partidos políticos – a política representativa – não tem, a algum tempo, nenhuma ancoragem com a população a não ser eleitoral; que tentam transformar nossos destinos e vidas em negócios extremamente lucrativos para políticos e empreiteiras; que a polícia passeia com os bicos dos fuzis para fora das janelas de seus carros produzindo um estado de medo generalizado; que são feitas chacinas nas favelas, induzidas por sentimentos de ódio aos pobres por essa mesma grande mídia; que a especulação imobiliária está nos expulsando de nossas casas; que o sistema de transporte público é uma verdadeira máfia que junta Estado e mercado etc. O conflito passa em grande parte, diante desse cenário, por explicitar, de diferentes maneiras, nossa revolta contra todas essas violências cotidianas, dessa maneira o conflito se torna a expressão do exercício da liberdade e democracia.

Apesar da tentação de entrarmos no jogo da grande mídia e encontrarmos, dentre os manifestantes, culpados para que se possa ser possível separar o joio do trigo, faz-se necessário antes termos em mente a multiplicidade da multidão que ocupou o centro do Rio de Janeiro no 17 de junho; que não necessitamos de instituições hierarquizadas para organizar nossas manifestações; e principalmente que não necessitamos da grande mídia para nos dizer quem somos ou deveríamos ser. Os confrontos ocorridos no Rio de Janeiro durante a manifestação de 17 de junho não foram atos isolados de vândalos, são expressão da multidão assim como as cirandas realizadas na cinelândia, a entrega de flores aos policiais, as bandeiras e cartazes etc. Para ver isso basta atentarmos para o fato que os principais alvos dos manifestantes foram a ALERJ, bancos e a própria polícia. Não é por acaso que foram estes os alvos, afinal estes são os maiores símbolos da opressão e da violência a qual somos submetidos todos os dias, símbolos máximos da dupla mafiosa Estado/mercado – base da revolta generalizada expressa por todos os manifestantes de diferentes formas.

As manifestações não começaram e não se encerram no dia 17 de junho – apesar desse dia já ter entrado para a história do Brasil e com certeza ter marcado nossos corpos – novas manifestações virão, novos desafios aparecerão, sendo que a força da multidão se mostrará, em grande parte, em não aderir ao discurso conservador da grande mídia, buscando na produção de diferença e conflito os caminhos para a autodeterminação de nossas vidas.

Notas escritas na correria e no calor do momento.

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