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O que é, é o que não pode ser, que não é

Por Rodrigo Guerón, do facebook

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A imensa manifestação de cem mil pessoas no Rio hoje foi aberta, os manifestantes tinham vários cartazes criativos, e pouquíssima coisa contra a presidente Dilma, o que até me surpreendeu um pouco; confesso que positivamente, embora Dilma esteja precisando mesmo de uma boa sacudida, em especial dos que apostaram nela como continuidade das mudanças iniciadas por Lula, como eu. A única vez que ouvi alguém gritar contra ela foi a partir do único carro de som que me pareceu de algum pequeno partido de esquerda, além de uma faixa. Já o Cabral, a Globo, e até o Jabor, o pessoal aproveitou para mandar tomar no c. à vontade.

Uma coisa eu achei especialmente legal: estava absolutamente claro para os manifestantes que a Globo e as grandes empresas de comunicação eram inimigas. O momento mais emocionante foi ver aquela garotada gritando num coro imenso que ecoava pelo paredão de prédios da Rio Branco: “A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura!”. Foi de arrepiar.

Aliás, aqui a obtusidade dos petistas que militaram contra a manifestação nas redes esta semana fica óbvia, embora também fosse bem significativa a presença de petistas, mais ou menos petistas, e gente que fez a campanha de Lula e Dilma, na manifestação. Ora, finalmente, um dos mais importantes pontos do programa do PT, de outros partidos de esquerda, e de vários movimentos, ficou finalmente claro no desejo das pessoas: a necessidade de democratização dos meios de comunicação e o autoritarismo da ação deles.

Não é o discurso burocrático que convence, é a luta. Aliás, o melhor discurso se inventa na luta. Não se trata de convencer os outros da nossa verdade, mais de opor potência à impotência. É aí que o desejo opera como a força criadora. De uma forma ou de outra denunciar a Globo e a Veja apareceu como uma condição de afirmação da força das pessoas e de suas lutas hoje, contra tudo o que a ela se opõe, contra a violência com a qual tentaram acabar com o movimento, e agora ardilosa e perigosamente fingem apoiá-lo para transformá-lo em outra coisa.

Nesse sentido, aliás, senti a falta de uma presença mais forte dos movimentos LGBT. Parece que os caras preferem agir isolados e ficar chamando de “ignorantes” as pessoas que não são a favor do casamento gay, ou ficar esperando o beijo gay na novela da Globo, a fazer uma luta política do lado de onde está a produção da liberdade. Já as mulheres em luta contra aquele projeto fundamentalista escandaloso do “nascituro” estavam lá, e os movimentos anti-remoção também.

No mais, havia cartazes com pedaços de letras do Chico Buarque (carregado pela geração dos netos dele) e alguma coisa do “Legião”. Já os cartazes padrão “basta” e “cansei” eram bem menos que imaginei. Mas o gosto de cantar o hino nacional, vestir verde e amarelo e dizer que o Rio acordou também se repetia. Neste caso penso como a minha amiga Tatiana Roque: “Eu não digo ‘basta’, eu quero é mais”.

As músicas sobre o aumento ainda estavam lá. Acho fundamental manter esta luta. Esta história que “não é só 0,20 centavos” é dúbia, por que esvaziar a pauta do transporte, a luta contra os monopólios de ônibus, o direito à cidade e a circulação nela, é exatamente o que querem as corporações de comunicação e certos “grupos anti-corrupção”, que na verdade temem as lutas que de fato atacam o poder político onde ele é corrupto: na relação com o capital. No caso, nas relações com as empresas de ônibus. Protestos vagos contra a corrupção não significam nada, e qualquer onda política conservadora pode se apropriar, quando não promover um. Collor e Janio que o digam.

Já o pessoal dos grupos de esquerda que estão com medo da manifestação por que ela está sendo “cooptada”, eu gostaria de insistir que a luta está aberta. É num cenário como esse que a gente tem a chance de avançar. Enquanto a esquerda teme o desejo das pessoas, teme a produção de subjetividade, esquece o que Marx chamou de “trabalho vivo”, o capital está atento a isso, e captura. Para estes (pseudo?) esquerdistas medrosos e aparelhados, que não gostam do que não tem uma “direção” pré-definida, eu parafraseio a seguinte provocação de Deleuze: “A psicanálise não entende nada de desejo, quem entende de desejo é o capitalismo”; que no caso ficaria assim: “A esquerda (ou uma “certa” esquerda) não entende nada de desejo, quem entende de desejo é o capitalismo”. Essa frase também serve pros Zé Manés que entraram com um caminhão na manifestação tentando impor palavras de ordem, enquanto a multidão criava as suas (vinda de grupos, às vezes, mas sem esta verticalização do “carro de som”). E se eu critico a esquerda aqui, eu o faço na perspectiva de uma ação política de esquerda.

O que deveria estar em questão é sim a contradição capital-trabalho, como viu aquele velho barbudo. Mas é esta contradição na maneira como ela se dá no capitalismo contemporâneo, porque a história, ou “as histórias” – e antes delas, com o perdão da expressão, os “devires desejantes” – continuaram acontecendo, e opor ao “fim da história” neo-liberal um “fim da história” supostamente marxista é igualmente reacionário. A história, os conflitos, os meios de produção e o próprio capitalismo em suas estruturas de poder, se reorganizaram de novas formas; inclusive para responder – e capturar – às forças do trabalho vivo, ou seja, para capturar a produção desejante de sujeitos que, há muito, não se contentam em ser apenas “classe operária” ou “exército industrial de reserva”.

Talvez esse meu pensamento seja uma certa forçada de barra, diante de um movimento tão cheio de jovens de classe média. Mas a nova composição social dos estudantes também estava presente lá ( e ainda mais em São Paulo), o que tem a ver com as mudanças trazidas pelo governo Lula. Uma multidão de estudantes hoje é diferente do que era há 10 anos atrás. Mas, pelo menos potencialmente, uma luta pelo direito ao transporte, o desejo político expresso na reivindicação de “passe livre” (e por isso me incomoda essa difusão geral de insatisfações para o qual querem jogar o movimento), são a maneira como a luta de classes pode se manifestar hoje, isto é, para muito além do espaço da fábrica, ali onde a produção acontece de fato: na cidade toda. A livre circulação é o direito à cidade. É preciso poder circular nela à vontade e se apropriar dela como espaço produtivo: da mesma forma que outrora o movimento operário quis ocupar as fábricas ( e muitas vezes conseguiu, até como acionista de certas empresas).

Precisamos poder ir para onde quisermos, temos a direito de estabelecer nossas redes, nossas trocas e nossos encontros, sem que estes sejam limitados à pauta do capital que reduz nossas escolhas às subjetividades prontas na prateleira e chama isso de “livre iniciativa” e “liberdade individual”, já na operação de captura que esvazia o que n consumo poderia ter de invenção ( o consumo muita além de um momento de pura aquisição das coisas).

Nesta mesma lógica, o capitalismo reduz a democracia à eleições onde às vezes parece que não podemos mais do que decidir quem vai entrar e quem vai sair da casa do reality show. Por isso, aliás, essa quase inevitável identificação entre o movimento do passe livre e a críticas às grandes corporações de comunicação – e o temor que elas têm que o movimento insista nisso. É tudo uma questão do desejo poder circular livremente para que, finalmente, possamos fazer a nossa economia: uma economia não quantificável. E aí podemos arriscar uma expressão que vem de um certo filósofo barbudo: trata-se, enfim, de “liberar as forças produtivas”.

* Rodrigo Guéron é autor de “Da Imagem ao Clichê, do Clichê à Imagem. Deleuze, Cinema e Pensamento”. Diretor e roteirista de cinema, autor dos curta metragens “750 Cidade de Deus”, “Clandestinidade” e “Eu Estou Bem cada Vez Melhor”.

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