Por Simona de Simoni, em Commonware | Trad. UniNômade Brasil
“A metrópole se tornou — e nesse devir a metrópole é dissolvente — um concatenamento de formas diferentes, heterogêneas e contemporâneas de valorização: não é o lugar (ou p posicionamento) que define a metrópole, mas um conjunto de relações (sem que isto signifique fluidificação e desincorporação das contraposições, desigualdades, injustiças e conflitos).”
Imagem: Saara, no Rio de Janeiro
—-
Em 1970, saiu na França um livro importante intitulado A revolução urbana [La révolution urbaine] (Henri Lefebvre). Remeto ao texto e ao título por uma razão simples: porque a ambiguidade semântica da fórmula “revolução urbana” permite focar duas ordens de questões. Principalmente, a hipótese de certa transformação da cidade (ou da dimensão urbana) é acompanhada por uma “revolução espacial” tout court (Lefebvre fala de “urbanização completa da sociedade”). Em segundo lugar, a convicção que, qualquer que seja a possibilidade de inovação política radical, essa transformação somente possa ser definida “a partir de” e “dentro de”configurações espaciais não predefinidas: a revolução, de fato, se torna urbana. Talvez seja supérfluo reiterar a natureza política de ambos os fatores: por um lado, uma virada espacial — alguma coisa de comparável a uma “revolução copernicana”, por sua radicalidade e incisividade epistêmica e política — onde a geografia do capitalismo vai se redefinindo como um todo (e onde, por geografia, se deva entender seja a produção material do mundo, seja um arranjo total de discursos sobre ele); por outro lado, a emergência de novas condições para pensar e agir politicamente, que definam possibilidades e modalidades de luta, conflito, emancipação e libertação. Obviamente, a imagem desta ruptura consiste numa “ficção teórica”, que traz junto “eventos-escalares” diversos (isto é, para dizê-lo muito simplesmente, fatos e coisas que ocupam espaços e lugares diversos). Isso para livrar o campo de equívocos sobre o posicionamento teórico: não se trata dalgum modo de narrar uma história universal e homogênea da cidade, nem tampouco do espaço tout court. A recusa do que Doreen Massey definiu como um “holismo claustrofóbico” me parece um pressuposto metodológico mínimo para não se fazer metafísica ruim (Massey, 2005). A “revolução urbana”, assim, é interpretada e usada como uma categoria que nomeia e pensa a multiplicidade e a diferença, tanto em termos teóricos quanto políticos.
Querendo falar de cidade e metrópole de um ponto de vista que assuma a perspectiva da “revolução urbana” (e que se assuma como tal), se põem duas ordens de problema: 1) a “revolução urbana” e a geografia do capital; 2) a “revolução urbana” e a geografia das lutas. Ou — para dizê-la um pouco secamente — quais formas de exploração, quais interações escalares, quais processos de subjetivação e quais chances?
Com a crise do fordismo, o espaço definitivamente se desarticulou, “desconexo” (Soja, 2007 et al), impondo, assim, a crítica e o descarte de uma concepção “a talho único” do espaço (Brenner Theodore, 2002). É nesse contexto que se realiza uma ruptura definitiva a respeito da dimensão metropolitana, tradicionalmente entendida (isto não quer dizer que as metrópoles industriais — ou melhor, os distritos metropolitanos industriais — tenham desaparecido, mas somente que cada vez menos ocorre uma relação biunívoca entre industrialização e urbanização). Sobre o plano da metrópole, na realidade, a explosão de uma espacialidade de matriz fordista se traduz em ruptura de uma relação equilibrada entre a dimensão urbana, a produção e a reprodução social: sai de cena a mediação espacial de tempos de vida e tempos de trabalho que, por mais de meio século, determinou o crescimento e a infraestrutura metropolitanos (Smith, 1996). Portanto, nem tanto um fato consumado ou evento histórico preciso e localizado, mas em vez disso a redefinição processual e diferenciada de relações que definem as relações de força dentro do capitalismo, em diferentes escalas.
Referindo-se a essa ordem de questões, David Harvey fala de “urbanização do capital” (por exemplo, Harvey, 2011). Compartilhando a impostação teórica, Neil Brenner sugere transformar a dita urban question em uma urbanisation question: numa pergunta que — com um gesto autenticamente marxiano — chama a atenção para as “coisas” enquanto processo conflitivo de produção (Brenner, 2013). Os concatenamentos sempre mais complexos e heterogêneos do que chamamos cidade e metrópole são configurações determinadas e heterogêneas neste processo de “produção do espaço”, que sobre muitos planos excede a distinção tradicional entre cidade e “não-cidade” (entre cidade e campo).
A passagem à urbanisation question permite raciocinar sobre a metrópole e na metrópole, adotando um quadro analítico abrangente, assentado sobre as conquistas teóricas da geografia crítica contemporânea e, acima de tudo, sensível à complexidade dos movimentos sociais que sucederam nos últimos anos (a entender-se como um dos fatores principais de turbulência espacial, como impulso subjetivo em contínua transformação). Movimentos que não apenas são “isomorfos” no plano do imaginário (e isto é evidente), mas que traçam e retraçam eixos de ligação, pelo que se definem formas de luta, capazes de atualizar uma “política transversal” e desde baixo (Yuval-Davis, 1997). São movimentos que se “colocam na transversal” sobre planos de convergência imprevistos: o que se pôde ver, restringindo-se a dois exemplos particularmente significativos, em Istambul e no Rio. De forma localizada, declinada, espúria e imperfeita — como sempre quer a realidade — as mesmas considerações podem ser estendidas ao que emergiu em Roma no 19 de outubro (19-O), bem como às experimentações contínuas de formas de “cidadania insurgente”.
No 19-O, de fato, se exprimiu (e se organizou) uma consciência coletiva e massificada (a não se entender como uma síntese, mas como convergência de experiências) da multiplicidade de formas de exploração, comiseramento e sofrimento, de que se nutre o capitalismo contemporâneo e, ao mesmo tempo, da potência comum que produz e vivifica a própria metrópole e, portanto, reforça a necessidade de agir em escalas diversas, porém simultâneos. Uma só grande obra: casa e renda para todos é um slogan que traduz a contraposição a numerosos fenômenos explicitáveis: renda e especulação imobiliárias, especulação infraestrutural, extração de valor das formas de vida, exploração do trabalho, subsunção através do endividamento, diferenciação e segmentação do trabalho por meio da governance de fluxos migratórios, “desempacotamento” territorial de base extrativa e empreendedorista (competição interurbana e grandes obras/grandes eventos). A lista poderia provavelmente ser engrossada ou reduzida do ponto de vista analítico, mas — em linhas gerais — está contida na passagem à dita “cidade empreendedora” (Harvey, 1989). Isto é, a redefinição das políticas urbanas agora em chave neoliberal (nos dois ciclos roll-back e roll-out).
A metrópole, de fato, não é mais — ou não é mais somente — o produto de uma organização da produção em escala maior (como começou a sê-lo, desde a primeira big city, no final do século 19, até a expansão da cidade fordista), e não é sequer redutível a um dispositivo articulado e sofisticado voltado ao consumo de massa. A metrópole se tornou — e nesse devir a metrópole é dissolvente — um concatenamento de formas diferentes, heterogêneas e contemporâneas de valorização: não é o lugar (ou o posicionamento) que define a metrópole, mas um conjunto de relações (sem que isto signifique fluidificação e desincorporação das contraposições, desigualdades, injustiças e conflitos). Simplesmente, a dimensão urbana não se define tanto pelas localizações geográficas/topológicas e interações neutras (a cidade não é um recipiente), mas, ao contrário, por meio de localizações produtivas (em sentido amplo) e relações encarnadas.
O que, além disso, parece bastante óbvio, se experimentamos pensar as metrópoles do ponto de vista subjetivo, a partir do que, por exemplo, um mapa da metrópole se tornou literalmente impossível (isto não coloca tanto um problema de “representação”, mas de planificação: se decaiu a pertinência do mapa, isto também acontece com o plano. Por que planificar?, em prol de qual segmento social?, de qual fluxo produtivo? Fica evidente — basta um sinal — a relação direta disto com o esgotamento histórico da centralidade do “estado-plano”).
Portanto, entre os numerosos eixos que definem o “mundo urbano” (e determinam variações de intensidade em seu interior e, assim, a sua heterogeneidade) talvez seja útil observar algo: a centralidade da cidade nos processos de valorização (onde a “cidade”, nesse ponto, pode ser definida como um tipo de recorte espacial, com uma projeção ideológica voltada a produzir convergência de capitais); os processos de re-scaling geográfico e institucional e as formas de regulação monetária e financeira; a transformação das formas de governance territorial em escalas diferentes com “experimentações”, em chave sempre mais tecnomilitarizada, e no contexto de uma verdadeira e própria “guerra aos pobres” (Wacquant, 2006); a segmentação literalmente biopolítica (e de classe) dos consumos, in primis aqueles alimentícios; os processos de inclusão diferencial e a proliferação de limites internos que definem formas de hierarquização do trabalho disseminado, diferenciado e encarnado, que terminam por tornar mais complexo o quadro em relação à mais tradicional concepção da divisão internacional do trabalho (Mezzadra/Neilson, 2013); a multiplicação das lutas em escala urbana e as formas de subjetivação.
Nesse quadro, a urbanização das lutas — a “política do encontro” em escala planetária, como a definiu Andy Merrifield (2013) — define quer a dimensão dos movimentos, quer, talvez, a projetualidade dentro do que podemos raciocinar. Obviamente, nada e ninguém existe sem história, e muito frequentemente, a imaginação política se exprime através da capacidade de “citação” e “tradução”, no sentido conferido a esta prática por Walter Benjamin (1997). Um raciocínio sobre a geografia do capitalismo (isto é, sobre a dimensão espaço-temporal específica que assumem hoje as relações de força no capitalismo) implica e é inseparável de uma redefinição das histórias, memórias e genealogias — em resumo, de um imaginário.
A dimensão urbana, por exemplo, é amplamente definida também por meio da circulação de práticas e imagens de forma inédita, a respeito do passado e estritamente ligadas às “mutações” da subjetividade. Quando, por exemplo, circula numa praça italiana uma imagem do Norte da África (ou da Turquia, ou do Brasil e assim por diante), não se trata somente de simples sugestões. Ou melhor, a tendência a filmar/fotografar as mobilizações de dentro delas e especificamente para difundi-las, tem uma forte intenção produtiva e não puramente informativa ou representativa. Num certo sentido, se pode alegar que nós nos encontramos diante de um tipo de “imaginação geográfica”, no sentido de Derek Gregory (1994): isto é, um conjunto de configurações/representações do mundo não necessariamente codificadas numa disciplina científica ou programa político, mas que são, no entanto, produtivas/”constituintes”.
Em tal sentido, — e se a hipótese é boa — não existem comparações arriscadas, porque não é sobre o plano da comparação que se põe a questão (isto, em linha de princípio, obviamente de forma contextual, contextualizada e “prudente”). De fato, as composições dos movimentos sociais pedem/produzem genealogias heterogêneas, a partir de posições diferentes (de cruzamentos espúrios e imprevistos), mas que podem entrar em ressonância e que têm potência comum (se pense, para um exemplo particularmente eficaz, na citação/tradução da figura do black bloc no Brasil).
De outra parte, a produção de um imaginário urbano contra uma imagem da cidade constitui um terreno de tensão e conflito, em que estamos todos implicados e que não descreve processos inapreensíveis de subjetivação, mas as nossas vidas quotidianas. A ideia de cidade, de fato, não é de jeito nenhum residual e tem, ao invés disso, um fortíssimo appeal ideológico: constitui um dispositivo discursivo (mas também procedimental, institucional etc), graças ao que convergem (se articulam, ou antes se organizam) diversas formas de valorização (onde convergem as formas de capital e investimento), e onde se produzem formas de adesão subjetiva (dispositivos de subjetivação), isto é, formas de participação produtiva (na forma cooperativa autônoma ou na forma-empresa). Talvez nós nos encontremos diante de variações específicas de um tema antigo/fundacional (a cidade, de fato, é a projeção ideológica por excelência: lugar da política e definição do político, e ao mesmo tempo como inclusão diferencial — isto é, exploração — de mulheres e escravos), mas também a cidade constitui substantivamente o arquivo dos discursos, em que se inscrevem os vários paradigmas do crescimento urbano. Criatividade, cultura, conhecimento, até chegar ao modelo ecotecnológico da smart city, como projeto unitário de subsunção de capital cognitivo, emotivo e comunicativo.
Mais a cidade se torna cool, mais ela gera rendimentos (e deste ponto de vista, está o célebre slogan “pobre mais sexy”, — com que o prefeito de Berlim lançou a cidade ao mesmo tempo em que se intensificavam as formas de gentrification choosy, e a pobre capital alemã era condenada a se tornar a capital hipster da Europa, — tem qualquer coisa de não banal e profética). Obviamente, não interessa fazer uma crítica moralista ou de estilo (nas metrópoles há espaço para todos os gostos), mas raciocinar sobre as energias materiais que se mobilizam neste contexto, e sobre a modalidade de sua captura econômica. Em suma, entre a ideia que a cooperação social criativa seja uma espécie de latência revolucionária constante e, em seu oposto, a sua condenação como expressão contemporânea da falsa consciência burguesa; talvez possa haver passos intermediários a dar. E a crise, talvez, tenha feito aparecer, pelo menos em parte, a perenidade do dispositivo-cidade como dispositivo de subjetivação (pelo menos na versão italiana, onde a creative class nunca se emancipou verdadeiramente do suporte do welfare familiar).
Em qualquer caso, essas contradições são levadas em conta num raciocínio sobre a metrópole, enquanto é sobretudo dentro da ambiguidade que o capital se autovaloriza, através de um consumo voraz de nosso desejo. Vem à mente — e assim eu concluo — a cidade de Anastasia, descrita por Ítalo Calvino (1972):
“A cidade te parece como um todo onde desejo algum se perde e de que tu fazes partes. Dado que ela goza tudo aquilo que tu não gozas, a ti não resta nada a fazer senão habitar esse desejo e ser-lhe contente. Tal poder, que ora dizem maligno ora benigno, tem Anastasia, cidade enganadora: se, durante oito horas por dia, tu trabalhas como lapidador de ágatas ônix crisoprásios, o teu cansaço que dá forma ao desejo toma do desejo a sua forma, e tu crês gozar por toda a Anastasia, mas dela não passas senão o escravo.”
—
* Intervenção no encontro sobre “cidade e metrópole” do ciclo de Commonware em Bolonha: “Cartografia das lutas”.
Tradutor: Bruno Cava