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Sete teses sobre marxismo e aceleracionismo

Por Matteo Pasquinelli, em seu blogue, 7/11/2013| Trad. Aukai Leisner

Seguindo na série sobre o aceleracionismo, neste artigo traduzido pela UniNômade, é feita uma tomada marxista do campo aceleracionista, a partir do conceito de abstração determinada — que, no melhor Marx, não se opõe ao concreto, mas é sua condição e gênese. M. Pasquinelli é pesquisador do comum e ativista ligado à EuroNômade.

ACCELERATE

O trabalho da abstração: sete teses transicionais sobre marxismo e aceleracionismo

Tese 1. O capitalismo é um objeto de alta abstração; o comum é uma força de abstração maior.

A noção marxiana de trabalho abstrato identificou o mecanismo profundo do capitalismo, isto é, a transformação do trabalho em equivalente geral. Mais adiante, Sohn-Rethel (1978) enxergou a relação estreita entre a abstração da linguagem, a abstração do mercadoria e a abstração do dinheiro.

Na introdução dos Grundrisse, Marx (1867) explica a abstração como a metodologia que aparecerá dez anos mais tarde no Capital (1867). Em Marx, o concreto é um resultado, o produto do processo de abstração: a realidade capitalista e, especificamente, a realidade revolucionária, é uma invenção: “O concreto é concreto porque concentra muitas determinações, daí a unidade do diverso. Ele aparece no processo do pensamento, portanto, como um processo de concentração, como um resultado, não como ponto de partida, mesmo que seja o ponto de partida na realidade e, portanto, também o ponto de partida da observação e concepção”. (Marx 1857 : 101).

A abstração é ao mesmo tempo a tendência do capital e o método do marxismo. Então o marxismo autonomista tomou posse da abstração e “bordou-a de novo no macacão do operário”: a abstração como o movimento do capital, mas também como o movimento de resistência a ele. Negri (1979: 66) particularmente colocou a abstração no centro do método da tendência antagonista, como um processo de conhecimento coletivo: “o processo de determinação abstrata está dado inteiramente nessa iluminação proletária coletiva: é portanto um elemento de crítica e uma forma de luta”. A idéia do comum nasceu como um projeto epistêmico.

Tese 2. O capitalismo evoluiu em direção a abstrações monetárias e tecnológicas (técnicas de financeirização e de governança por meio de algoritmos).

O capitalismo contemporâneo evoluiu segundo dois principais vetores de abstração: abstração monetária (financeirização) e abstração tecnológica (os algoritmos da sociedade da metainformação).

Colocando em termos do diagrama da composição orgânica do capital (Marx 1867 : 762), isso significa: a composição tecnológica evoluiu em direção à abstração algorítmica das redes (governança da informação), enquanto a composição de valor evoluiu em direção à abstração monetária dos títulos derivativos e créditos futuros (governança da dívida). “As finanças, como o dinheiro em geral, expressam o valor do trabalho e do valor produzido pelo trabalho, mas por meio de formas altamente abstratas. A especificidade das finanças, em alguns aspectos, é que ela visa a representar o valor futuro do trabalho e sua produtividade futura.” (Hardt em Matarazzi 2008 : 9). O comércio algorítmico ou algonegócio [algotrading] é um bom exemplo da evolução conjunta dessas duas linhagens maquínicas e uma boa medida do estado de desespero dos capitais de investimento.

De outro ponto de vista, baseando-se nas novas formas de trabalho cibernético, Alquati (1963) tentou combinar essa evolução paralela na noção de informação valorizante (misturando as noções de informação cibernética e de valor, da teoria marxina). Alquati descreveu uma fábrica cibernética que, como as redes digitais hoje em dia, era capaz de absorver o conhecimento humano e torná-lo inteligência maquínica e valor maquínico (alimentando dessa maneira o capital fixo). O capitalismo passou a mostrar então o perfil de uma inteligência global autônoma: “A cibernética recompõe globalmente e organicamente as funções do trabalhador genérico, que são pulverizadas em micro-decisões individuais: o Bit conecta o trabalhador atomizado às figuras do Plano econômico”. (Alquati 1963 : 134).

Na fábrica de Alquati, já temos o embrião de uma máquina abstrata, uma concreção do capital que não é mais feita de aço.

Tese 3. A abstrações é a forma de ambos o capitalismo cognitivo e o biopoder.

A noção de normatividade biopolítica foi introduzida por Foucault em seu curso de 1975, Os anormais. Através da modernidade, Foucault enxergou uma forma de poder que não era exercida por meio de técnicas de repressão da sexualidade, mas por meio de produção positiva de conhecimento sobre a sexualidade. Foucault (1975 : 50) distinguiu desta maneira os domínios da Lei e da Norma: “A função da Norma não é excluir e rejeitar. Ao contrário, está sempre ligada a uma técnica positiva de intervenção e transformação, a uma espécie de projeto normativo. O que o século XIX estabeleceu através da disciplina de normalização… não parece ser um poder ligado à ignorância, mas um poder que funciona somente graças à formação de um conhecimento”.

O fato curioso é que a noção foucaultiana de poder normativo foi inspirada por seu mentor Canguilhem (1966), que emprestou essa idéia do neurologista Kurt Goldstein (1934), aplicando-a às ciências sociais. Em Goldstein, o poder normativo é a habilidade do cérebro para produzir novas normas a fim de se adptar ao meio ou responder a traumas. De maneira similar à Gestaltheorie, Goldstein acreditava que o poder normativo do organismo era baseado no poder da abstração.

Foucault (1945) iniciou seu primeiro livro com uma crítica de Goldstein, transformando mais tarde o poder de abstração numa apropriada epistemologia do poder. A biopolítica nasceu como noopolítica – e o problema essencial que acossa a política da vida é ainda a política da abstração. Ambos os paradigmas do biopoder e o do capitalismo cognitivo devem ser descritos como a exploração e alienação exercidas pelo poder de abstração.

Tese 4. A abstração é a espinha dorsal da percepção do Mundo (e do Eu).

A abstração é a forma da sensação, e portanto do corpo e mundo percebidos. Já há mais de um século, a Teoria da Gestalt mostrou que a percepção visual de uma figura é baseada na capacidade holística do cérebro de generalizar pontos e linhas abstratas, isto é, num poder coletivo do organismo. “A percepção e a consciência perceptual dependem de capacidades para ação e o pensamento ; a percepção é um tipo de atividade que demanda pensamento”, lembra a mais recente escola do performativismo (Noe 2004: vii).

A percepção é sempre uma construção hipotética (ou abdução, como diria Pierce). Da filosofia budista a Spinoza à neurociência contemporânea (Maturana e Varela 1980), a mente emerge como enxame – uma cooperação coletiva e uma abstração de singularidades (átomos, células, neurônios, etc) produzindo o efeito túnel do corpo e do Eu (Metzinger 2009). A neuroplasticidade é a capacidade da mente de se reorganizar depois de um prejuízo, mas é também sua estrita disfuncionalidade e abertura para o caos. Se o enxame atômico se recompõe de maneira diferente, novas formas de Gestalt surgem, como por exemplo alucinações, sonhos, imaginação e invenção. A abstração deve ser considerada como um poder coletivo da mente, abstrato e lógico, que precede também a linguagem, a matemática e a ciência em geral: é o poder de perceber em detalhe e reconhecer uma emoção, de projetar o Eu além de seus limites culturais, de mudar os hábitos para se recuperar de um trauma, ou de inventar uma nova norma para se adptar ao ambiente (Goldstein 1984). É também, é claro, o poder de manipular ferramentas, máquinas e informações. A abstração deita raízes profundas no tempo e na vida. Também Deleuze e Guattari (1980: 496) lembram que o gesto artístico primário dos humanos foi uma linha abstrata: a arte primitiva começa com o abstrato (Worringer 1908).

5. Eros é a cruel abstração do Eu.

Não há oposição entre vida e saber como lembra vigorosamente Canguilhem (1965: xvii): “Nós aceitamos muito facilmente que há um conflito fundamental entre vida e saber, de tal ordem que sua recíproca aversão só pode conduzir à destruição da vida pelo conhecimento e ao rebaixamento do conhecimento pela vida. […] Não se trata de um conflito entre o pensamento e a vida, no homem, mas de um conflito entre o homem e o mundo.”

Como lembra Tronti (1966: 14), o conflito é um mecanismo epistêmico: “O conhecimento está vinculado à luta. Quem odeia verdadeiramente, verdadeiramente sabe”. No entanto, a separação milenar entre corpo e alma, e particularmente entre Eros e abstração, ronda as interpretações do capitalismo cognitivo. Muitos filósofos radicais lamentam a des-erotização do corpo pelo trabalho digital, o hiperfluxo de informações e a atmosfera midiática hipersexualizada (Agamben, Berardi, Stiegler etc) e, como resposta política, eles parecem sugerir a “insurreição erótica” da vida nua.

No entanto, se o biopoder é uma máquina abstrata, a resistência não está em demandar mais corpo, mais afeto, mais libido, etc, mas em recobrar o poder alienado da abstração, isto é, a habilidade de diferenciar, bifurcar, e perceber as coisas em detalhes, inclusive nossos próprios sentimentos (Foucault 1976: 159 sobre a ironia do dispositivo da sexualidade que incita à continua “liberação sexual”). Contra a recepção usual da filosofia do desejo, Negarestani (2009) notou que Deleuze abre seu livro Diferença e Repetição (1968) postulando uma conexão fundamental entre diferença e crueldade. A abstração não deve ser entendida como um impulso contra a “vida”, mas como um gesto violento de todo ser contra seu próprio Grund (identidade, gênero, classe, espécie, etc).

Em Spinoza, com efeito, a alegria e o amor marcam a passagem a uma perfeição mais elevada. “A anatomia humana contém a chave para a anatomia do macaco” – sugere Marx (1857: 105) numa afirmação aparentemente antropocêntrica. Ao contrário, essas palavras insinuam anastroficamente o passo em direção a um estágio pós-humano: “A anatomia do alien contém a chave para a anatomia do humano”.

Tese 6. O poder de acumular, o poder de restringir, o poder de acelerar.

A política é tática e estratégia de temporalidade (isto é, de invenção do tempo). A esse respeito, Marx foi acusado de dois erros opostos: messianismo do kairós (“Marx secularizou o tempo messiânico na concepção da sociedade sem classes”, Benjamin 1940) e quantificação do kronos, ou a medida da mais-valia em tempo de relógio (Marx ainda pertence à tradição aristotélica da mensurabilidade do ser, notam Hardt e Negri 2000: 354).

Entre eles, há a tentativa mais elegante já feita para compactar a totalidade da engrenagem capitalista industrial em uma pequena fórmula, qual seja, a equação da tendência do declínio da taxa de lucro (Marx 1894: 317), que vai se tornar o primeiro diagrama do aceleracionismo. “Qual é o caminho revolucionário?…Retirar-se do mercado capitalista?…Ou ir na direção oposta? Ir ainda mais longe, quer dizer, aprofundar o movimento do mercado, de decodificação e desterritorialização?… Não retirar-se do processo, mas ir em frente, acelerar o processo, como queria Nietzsche” (Deleuze e Guattari 1972: 239).

O operaísmo tem repetidas vezes criticado a formulação marxiana da composição orgânica do capital, por estar restrita ao perímetro da fábrica industrial e não aberta à totalidade da metrópole. Depois de romper a prisão da composição orgânica do capital, no entanto, a teoria italiana (Agamben, Esposito, Virno) construiu outra sob o nome de katechon, ou “a força que contém o mal”, que tem sido considerada o modelo ambivalente para as instituições da multidão (Virno 2008: 62). Contra o dilema claustrofóbico do katechon, a hipótese aceleracionista tenta respirar o ar do grande Fora.

Tese 7. Do “general intellect” à inteligência alienígena, ou o tema da abstração.

A ontologia do antagonismo do marxismo autonomista frequentemente sustenta uma posição humanista no interior de uma tradição antropocêntrica (por exemplo Berardi 2011): com efeito, o capitalismo é uma força inumana, uma força que busca explorar e superar o humano. No entanto, qualquer projeto de autonomia deveria ser postulado como o devir-pós-humano da própria classe trabalhadora: uma vez que não há uma classe original de que se deva sentir nostalgia. “O Capital devidamente considerado é uma vasta força inumana, uma forma de vida genuinamente inumana (dado que é inteiramente não-orgânico) da qual todos nós pouco sabemos. Uma nova investigação dessa forma deve proceder exatamente como uma cartografia anti-antropomórfica, um estudo sobre finanças alienígenas, uma Xenoeconomia” (Williams 2008).”

O marxismo especulativo pode ser definido como a passagem do paradigma do capitalismo cognitivo para um paradigma que descreve o capitalismo como uma inteligência alienígena: ” a história do capitalismo é a de uma invasão de um espaço de inteligência alienígena vindo do futuro, que deve ser montado inteiramente a partir dos recursos do inimigo” (Land 1993).

Aqui, nenhum fatalismo ou dualismo à vista: a autonomia política do General Intellect (Virno 1990) tem que se tranformar também em inteligência alienígena. A subjetividade da abstração tem que estabelecer novas alianças com forças não-humanas e maquínicas. Especificamente, a equação marxiana da queda da taxa de lucro tem que encontar seu gêmeo epistêmico.

Nesse sentido, o aceleracionismo marxista (Srnicek e Williams 2013) parece não ser somente uma mera aceleração catastrófica do capital (como em Virilo, Baudrillard e Land), mas uma aceleração epistêmica e uma reapropriação do capital fixo como tecnologia e conhecimento (uma espécie de singularidade epistêmica).

A inteligência coletiva tem que se organizar em uma inteligência hostil – também no sentido de inocular o hospedeiro* como um parasita maligno. Uma inteligência alienígena não está preocupada com qualquer ortodoxia, mas prolifera e organiza suas próprias heresias.

NOTA DO TRADUTOR

* A palavra “host”, em inglês, além de radical da palavra “hostile” (hostil, em português), também tem o sentido de “hospedeiro”, nome dado, na biologia, a animais ou plantas que parasitam outros animais ou plantas como estratégia de sobrevivência.

REFERÊNCIAS

Tese 1

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