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Comitê antipixo ameaça o direito à cidade

Por coletivo Cultura de Rua (Belo Horizonte), em 9/4/2014, via Ludmilla Zago

Pixo

Para lojistas organizados de BH, além de sujar e enfear a cidade, os pixadores — embora “não causem homicídios” — tornam os lugares atrativos a criminosos. O pixo, expressão legítima da reapropriação da cidade por seus viventes, continua a ser visto como sujeira e crime. Em vez de valorizado como riqueza comum, produzida e compartilhada por todos, as fachadas que compõem a paisagem da cidade continuam a ser vistas como privadas. (N.E.)

Em 18 de março, aconteceu na Câmara dos Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH) um encontro entre lojistas, sociedade civil e representantes dos órgãos de segurança pública, para discutir um possível “combate” à pixação na cidade.

O discurso higienista, tão frequente em nossa sociedade hoje, continua muito presente na forma como o governo trata a convivência nas cidades. Isso nos fez desejar responder e comentar um pouco do que ouvimos desse discurso, tendo como base o que conseguimos entender, desde que iniciamos a pesquisa em Belo Horizonte, acerca da pixação, as suas características e o que ela traz em termos de representação cultural para a cidade.

Em primeiro lugar, quanto à estética da cidade, os participantes do citado encontro consideram que “cidade bonita” é igual à cidade limpa. E cidade limpa, como se viu nas falas no referido café dos lojistas, é a cidade não pixada. O pixo é visto como sujeira e não pode existir na cidade limpa. Todos ali se debruçavam sobre a vontade de uma “BH melhor e mais bonita”, o que levaria a um tema ainda maior: “uma vida melhor de BH”. Foi dito que “viver não é só comer, é ver a cidade bonita”.

Os empresários do comércio se colocaram como aqueles que, investindo nas fachadas, seriam os que mais contribuiriam com uma “cidade mais bonita”. O pixo não só iria no sentido contrário dessa “contribuição” e “investimento”, como também atrairia criminosos. Todos estariam percebendo, em consenso, que o “visual de BH” está a cada dia mais degradante, porque está todo “borrocado” de spray. “Parece que são gangues diferentes que querem acabar com Belo Horizonte” e, por isso, “está muito triste isso aqui”.

A seguir, intriga muito a questão colocada pelos lojistas: “É essa a cidade que queremos vender para o turista?” Ora, perguntamos: quem dita a estética de uma cidade? Como distinguir uma arte como bonita ou feia? Podemos mencionar, como contrapontos, o “feio” exibido nas propagandas espalhadas pela cidade, e que tanto têm a ver com os lojistas.

Pesquisando, percebemos que existem vários admiradores da cultura do pixo. Aqueles que vêm admirar o pixo de BH, as camadas entre pixo e graffiti sobrepostas em diversos locais da cidade, as mesmas marcas, consideradas pelos lojistas como sujeira. Por isso, pensamos ser necessário conversarmos mais sobre o que é uma paisagem bela, o que é uma paisagem condizente com uso feito pelos corpos das ruas da cidade, para que também se possa ampliar a concepção de cidade, que precisa conceber a dimensão da vida e da convivência, como constitutivas da ideia de belo ou feio. A propósito, por falar em corpo, na CDL/BH o pixo foi colocado como algo que precisa ser combatido como se combatem doenças (!), como o “antibiótico” que, por seu uso indiscriminado, limita seu acesso.

Uma alternativa sugerida no encontro foi o controle intensificado sobre a venda de sprays na cidade. Foi questionada a abordagem nas madrugadas pela PM: pessoas com escada e com mochilas estão sob suspeita da polícia.

Disseram que mesmo que o pixo não gere homicídios, causa muitos transtornos. Tomando os transtornos como já esclarecidos, lembraram de uma escolha que o cidadão tem, entre apenas duas: uma escolha entre cidade limpa, logo saudável, OU cidade suja, logo doente. Educação continuada imprescindível para a vida nas cidades, e é preciso demonstrar o quanto se gasta com a limpeza e o que significa esse gasto.

O munícipe é indicado como fiscal que precisa ajudar em uma correção que gere prevenção e deve ajudar a polícia. Pode-se questionar que visão da educação é essa, que tem a punição como forma central de atuação. Foi mencionada, ainda, a função social da denúncia. Queremos saber se a denúncia contribui, e em que, para a convivência entre diferenças no mesmo espaço.

Reclamaram dos 500 mil reais gastos com limpeza dos muros pixados durante a Copa das Confederações (foram realizadas pinturas por mais de 17 vezes). Passou despercebido pelos presentes, talvez, a contradição, pois alegaram que BH foi considerada uma das cidades mais limpas do Brasil no período de jogos e manifestações. Frisamos o que foi dito sobre as rotas protocolares: que é preciso focar pra que se enxergue nessas ruas uma cidade mais bonita do que aquilo que elas apresentam.

Tentando então, diagnosticar nosso problema e encontrar soluções, segue a conversa sobre o problema que, segundo entendem, é referente à educação, é uma questão cultural da sociedade que temos. Sobre quais intervenções possíveis para tratar e extinguir a questão ou o problema sugerem e constatam que é preciso criar uma delegacia especializada em crimes urbanos, onde seriam investigados os problemas relativos ao pixo. Situado o maior entrave pelo tenente coronel, que dissertou mais longamente sobre o assunto do café e advertiu a todos: a lei é o maior entrave para a polícia e para a cidade. Por quê? Porque pode ser revertida a cadeia em pena alternativa, o que, na opinião do militar, impede a prevenção efetiva.

O jovem, segundo sua interpretação, sente-se empoderado por ter total noção da fragilidade da lei, sendo a impunidade a razão do pixo ser tão presente na paisagem da cidade de Belo Horizonte e em tantas outras cidades do país, e até do mundo, como alguém presente na ocasião pode lembrar.

O policial repetiu a noção de que a pixação gera degradação do ambiente, e essa degradação afeta a segurança das pessoas na cidade, pois atrai o crime. Segurança da vida é colocada como diretamente associada à do patrimônio. Não serão as duas coisas um pouco diferentes? Será que é justo igualar tanto a vida e o patrimônio? O Movimento Respeito por BH, mencionado aqui, foi embasado pela teoria que também fundamenta a noção do policial, que é a teoria das janelas quebradas.

Segundo essa teoria, a cidade limpa oferece sensação de segurança e provoca uma intervenção mais efetiva da polícia que, se focada em pequenos delitos, pixações, ações bem localizadas, age com muito mais facilidade. Dado: BH recebe 300 pixos novos por mês. São gastos dois milhões por ano com limpeza – essa é a perda da sociedade com o delito do pixo, segundo mostrou a todos no café. Mas, não se questiona se esse dinheiro poderia ter outro uso ou se a limpeza não poderia ser relativizada.

Entre janeiro e março, foram catorze ocorrências registradas, sendo que nove ocorreram no perímetro da Contorno – incluindo as passeatas e a pixação no monumento da Copa – o policial lembra da ineficácia da sanção, a seu ver, irrelevante. Muito presente na reunião, o relato de que não há punição devida a quem pixa. Mais uma vez levantamos novo contraponto: o que se diz enquanto punição apropriada a quem pixa?

Os pixadores, além de responderem por seus processos na justiça (que devem ser abertos apenas quando devidamente apreendidos em flagrante), sofrem em grande parte com as abordagens policiais, sendo torturados tanto física quanto psicologicamente. Os pixadores costumam ser agredidos fisicamente, pintados com seus próprios sprays, ter seus pertences roubados e ainda, em casos extremos, ser mortos por representantes da segurança pública (incluindo também o Corpo de Bombeiros).

Nesse ponto, é importante destacar que o fato dos pixadores cometerem crime não lhes diminui enquanto cidadãos, sujeitos de direito, que devem ter seus direitos fundamentais respeitados como qualquer outra pessoa. E, por outro lado, tendo em vista a repressão e a tentativa de controle como únicos recursos possíveis para lidar, conviver e se relacionar com a pixação elencados no encontro do qual falamos, torna-se necessário apontar o quanto são insuficientes. Já passamos por prisões de pixadores na cidade que nunca serviram pra diminuir a presença do pixo na cidade. Será essa a melhor solução, repetir a mesma tônica, o mesmo sentido para onde olha a cidade a cada impasse diante do periférico, do outro? O que não se pode apagar ou controlar só pode ser punido e segregado?

Que o pixo é sujeira não é um consenso. E nem mesmo as pessoas presentes eram capacitadas teórica e tecnicamente para julgarem quando uma expressão pode ser julgada arte. Parece, pelo que disseram, que se fosse arte e se deixasse regular pelo seu padrão estético e seus interesses, seria possível considerá-la de maior relevância.

Temos que seguir buscando a educação”; “Voltou a lei sobre o pixo, mas a lei não se cumpre”. Mencionaram o episódio no Rio de Janeiro e tomou-se como exemplar a conduta seguida pelas autoridades, de ridicularizar os pixadores e fazê-los de exemplo para quem se aventurar ao mesmo tipo de ato que o do pixo na estátua do Carlos Drumond de Andrade, na orla carioca.

Entendemos que há exagero na repressão que existe e no anseio de que ela seja mais rigorosa e que leve à cadeia, assim como na exclusividade desse meio de lidar com o pixo, que é expressão, é cultura, modo de vida, de identidade, de percurso na cidade e, mesmo, uma educação patrimonial e um direito à cidade, escrito de modo próprio. Reprimir, como já pudemos experimentar, não irá resolver. É exatamente por ser uma manifestação política de indignação frente às injustiças vividas por quem pixa que a pixação existe. Ela é insistente por natureza, traz em si uma selvageria própria da juventude, da cultura de rua. A pixação integra muitos valores, ética, contornos importantes demais pra seus atores.

Além disso, a higienia e a injustiça tocam um pixador. Jamais se viu grandes protestos sem pixos, não é mesmo? Será que é apenas para sujar? É assim que falam, que se tornam visíveis e presentes para a cidade. É assim que muitas verdades da vida urbana se expressam em seus muros. Aliado a isso, talvez já passe da hora de se pensar uma cidade para se viver, e não uma cidade que se ponha à venda. A isso, e muitos outros de nossos entraves sociais e de entendimento do conviver, o pixo sempre respondeu e sempre irá responder. E hoje, apesar dos pesares, muitos pelo Brasil, pesquisadores de diversas cidades e de Universidades estrangeiras se interessam e afirmam a pixação por outros aspectos, que precisam ser considerados.

Cultura de Rua – Cidade e Alteridade

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