Por Hugo Albuquerque | No Descurvo
Há uma semana, Fernando Haddad foi eleito prefeito de São Paulo. O que é realmente curioso nesse processo — além dele ter sido a disputa municipal que mais aludiu à grande disputa nacional, PT x PSDB — foi a exposição de um abismo (eleitoral, político, social, econômico, cultural…) na maior metrópole do país: de um lado, a periferia pobre, com muitos habitantes, poucos empregos e poucas políticas públicas, do outro, a São Paulo do centro expandido, seus centros empresariais, culturais e bairros de primeiro mundo.
Os fluxos da cidade movem-se sob uma lei clara: a multidão confinada nas periferias é obrigada a se deslocar — para chegar aos seus empregos, aos hospitais, universidades e opções de entretenimento e cultura — em um transporte público superlotado, por vias superlotadas. A poluição crônica e o congestionamento das vias — nasais e públicas — é a resultante óbvia desse processo. São Paulo poderia funcionar, a exemplo de outras metrópoles ao redor do globo, na sua disfuncionalidade, mas o fato é que sua elite dirigente, embora se orgulhe de ter conseguido confinar os pobres para longe, não logrou muito êxito nisso.
Sim, a noção de crise social é sempre relativa. Ela diz respeito para quem e como: na periferia, a crise é permanente — está no interior de seu ser, não no predicado –, enquanto nos bairros de elite, ela pode ser uma ocasião determinada. Mas a crise da periferia, que é periferia do centro — isto é, sua existência é relativa, de modo mútuo e simultaneamente implicante, a do centro. Não há duas São Paulos. Há –como efeito e não por natureza — uma mesma São Paulo: e a Lei do Mesmo, aplicada sobre diferentes (étnicos, sociais, políticos etc) produz uma grande fenda na forma de desigualdade, exposta na divisão, de caráter segregacionista, da metrópole paulistana em duas metades.
Todos sabem que as coisas vão mal por aqui. Mas é um ir mal que, como já dissemos, varia do ponto de vista, e do modo, que se olhe. Kassab não foi um mau prefeito do mesmo modo para um habitante médio de um bairro de elite e para um morador da extrema periferia. Tanto que mesmo entre quem avaliava mal sua gestão nos bairros ricos, votou, via de regra, em Serra (seu antecessor e sucessor natural). O fato de Kassab ter sido considerado um mal prefeito em toda parte, no entanto, alude para a possibilidade de que há um mal comum — e, portanto, abre a brecha para a produção de um bem comum.
Mesmo dentro da estrutura conflitual da sociedade capitalista — e como esse fenômeno se manifesta disposto no corpo de uma metrópole como São Paulo — na qual o mal é diferente e varia conforme o sujeito e o modo, é possível que as contradições se expressem de modo que a vida seja comumente ruim ou, em sentido inverso, que possa ser comumente boa: e bem e mal, aqui, como situação que permite o aumento ou diminuição da potências das pessoas no contexto da vida urbana.
Isso está longe de ser uma formulação de que é possível um governo municipal, ou a atuação política urbana, poder ser universalmente boa, mas sim de que há um bem, um aumento de potência, que possa ser comum e estar no comum das vidas. Um argumento [retórico] possível para a vitória petista é que quem “precisa de governo” — ou de bem estar — votou em Haddad, enquanto a parte que não dependeria disso pôde optar por uma saída moral que se desdobraria em uma bifurcação: (i) já que eu não preciso e o outro precisa, eu voto conforme o interesse dos “necessitados”; (ii) eu voto conforme meu interesse enquanto abastado.
Se fosse assim, tudo estaria perdido. Seria como se, uma vez terminadas as necessidades, ninguém votaria em uma proposta social, o que é falso. A verdade é que todos podem optar, como optam, para além das suas necessidades. E podem optar por fora da moral, por fora até do seu próprio interesse, mas não para além do seu próprio desejo — e foi assim que optaram; tampouco existe a possibilidade de que as metades nas quais São Paulo está dividida sejam causais: elas são efeitos, que se interrelacionam, e compartilham do mesmo evento causante que é o próprio sistema de produção, e sua disposição pela metrópole. Se dizemos que algo produz riqueza é porque está, ao mesmo tempo, produzindo pobreza, uma vez que riqueza e pobreza são condições relativas e mutuamente implicantes (se há rico, é preciso haver um pobre e vice-versa).
Nas diferenças de posições da cadeia produtiva, e da organização social, haverá sempre lados e a relatividade aparente da crise — os altos aluguéis são a crise dos sem casa para morar e o tempo de vacas gordas dos proprietários de imóveis — mas esses lados só existem porque, antes de mais nada (num sentido ontológico e não cronológico) há um comum metropolitano e urbano: O rico pede pobres para poder ser o que é, enquanto o pobre pode ser o que já é sem os ricos.
Embora a situação de exploração possa durar indefinidamente, o fato é que ela dura mal, para ambas as partes: se os pobres votam em quem apresenta um programa mais favorável, é pela afirmação de sua potência e de sua condição — o que consiste numa opção –, mas quando os ricos fazem algo semelhante, vê-se que a simetria é falsa, uma vez que não há voto mais servil do que aquele que serve para atestar o próprio vazio de sua condição.
Os ricos vivem aparentemente bem, do contrário não o seriam, mas vivem bem às custas do vício na exploração do outra, na paranoia constante que isso implica (é preciso manter o controle! manter o controle!), o que em outra palavras é viver mal, é viver em um estado de constante vazio — entre doses de rivotril, cercas eletrificadas e a impossibilidade deles, mais do que ninguém, em disporem da própria cidade (por motivos objetivos e subjetivos).
A questão não está em investir na “base da pirâmide social” em vez da “ponta” para universalizar o bem-estar. Está em investir no desejo que perpassa todo o sistema de modo comum. É da compreensão disso que a ocupação da função de governo, enquanto antigoverno (e não desgoverno, como Kassab), pode produzir alguma diferença: o desgoverno demonstra por vias tortas que há uma potência comum compartilhada, para o bem e para mal, na urbe, enquanto o antigoverno a catalisa.
É nesse cenário que Haddad assume. E assume porque, antes de mais nada, o Lulismo que ele ajudou a construir, ao deixar de lado a retórica própria da esquerda e assumir práticas radicais, permitiu. Não é mais como a São Paulo de 2000, onde Marta apesar da votação apenas um pouco maior do que a dele, venceu em toda parte: agora, claramente, a cidade tem lados, uma vez que a luta de classes saiu do plano figurativo. Os pobres, agora, desejam, foram autorizados a desejar e tudo mais é uma consequência disso.
Haddad venceu pela fortuna — pelos fatores e variáveis não capturáveis pela esfera de cognição de um movimento político — além da virtù. Ele terá de articular as tensões de força dentro do PT paulistano e suas inúmeras correntes, sabendo que os movimentos e redes de apoiadores externos, além de essenciais para sua vitória, são a única fonte suficiente para evitar que o partido, e o seu governo, devore a si mesmo. Vai precisar desses mesmos setores, inclusive, para não ser devorado por uma Câmara fisiológica onde não tem maioria e Kassab conserva sua influência.
São Paulo, pela primeira vez em dez anos, respira. Desobrigada de ser trincheira dos projetos pessoais de quem fracassou nos anos 90 e insistiu em reagir ao projeto que mudou esse país ao longo da última década, a altos custos humanos, agora a metrópole paulistana pode ser tornar quem ela é.
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Link do editor:
16 Perguntas sobre o PCC, entrevista com quatro pesquisadores no blogue Crimes no Brasil