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Horto do Rio: memória na luta pela afirmação da identidade e preservação de sua história

Por Laura Olivieri Carneiro de Souza

O Horto Florestal do Rio de Janeiro existe formalmente no mapa da cidade desde 1875, quando foi oficializado como parte integrante da Freguesia da Gávea. Antes, porém, a região já possuía uma longa e movimentada história, cujo primeiro marco temporal remonta a 1575, quando um engenho de açúcar se estabeleceu ali: o Engenho D´El Rey, localizado no Morro das Margaridas.

A população do Horto é caracterizada como uma comunidade tradicional porque muitos de seus moradores são enraizados no território desde seus ancestrais escravos e quilombolas. Para pesquisar historicamente a sua identidade, os moradores criaram o Museu do Horto (www.museudohorto.org.br) que tem o reconhecimento da Fundação Palmares e também do IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus) como Ponto de Memória oficial de sua rede de atuação museológica.

A colonização portuguesa no Brasil se afirmou pela lógica do sistema colonial escravista (NOVAIS, 1990) que se estabeleceu a partir da exploração da mão-de-obra de origem africana. Hoje, é sabido e notório na historiografia que onde houve escravidão, houve igualmente resistência. Daí a afirmação da identidade quilombola do lugar. Ademais, no século XIX abolicionista, o Horto era rota de fuga para os escravos resistentes que transitavam pela cidade em busca de abrigo nos Quilombos da Sacopã —na Lagoa Rodrigo de Freitas— e das Camélias —no atual Alto Leblon (SILVA, 2003).

No século XX a região foi palco da industrialização inicial da cidade, com a construção da fábrica de tecidos América Fabril e suas vilas operárias. Lugar de memória da resistência comunista e anarquista da era Vargas. Já nos anos 1960, Juscelino Kubitschek fundava a Escola Municipal Julia Kubitschek para atender à população local.

Dito tudo isso, torna-se evidente que a tentativa de criminalização dos moradores do Horto como “invasores do Jardim Botânico” não passa de uma construção falaciosa do discurso hegemônico para legitimar a sua posição numa guerra da classe dominante sobre a população trabalhadora, honesta e tradicional do lugar. Sim, é disso que se trata, fundamentalmente, a questão fundiária do Horto e a verdade precisa ser revelada em narrativas contra-hegemônicas, como esta, a fim de se desconstruir a lógica perversa a partir da qual aquele discurso se fundamenta: a retórica vazia de uma elite preconceituosa com os pobres e gananciosa de poder e status.

No último dia 9 de maio, o Governo Federal anunciou a sua decisão sobre o perímetro do IPJBRJ (Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro), demarcação que implicou na proposta de remoção dessa população tradicional —a despeito das conquistas democráticas reafirmadas pela Constituição de 1988 e outros importantes estatutos e marcos legais afirmados posteriormente que buscam garantir a desconstrução das desigualdades históricas de nosso país e a implementação de políticas públicas inclusivas.

O que considero mais estapafúrdio na decisão anunciada é a arrogância do IPJBRJ e seus amigos em ignorar propositadamente um trabalho político-acadêmico realizado com seriedade e dedicação, pelo período de dois anos de pesquisa de campo participativa, que foi a avaliação sócio-econômico e ambiental da população do Horto, realizada pela SPU (Superintendência do Patrimônio da União) em parceria com o Laboratório de Moradia da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. Trata-se de um trabalho da maior competência —no duplo sentido da capacidade de seus técnicos e de a quem compete a questão fundiária em foco—, na medida em que a SPU é a legítima gestora das terras e de todos os bens da União.

Somado a isso, a proposta de Regularização Fundiária que resultou desse trabalho, significou a afirmação dos direitos constitucionais e da intenção democratizante de um órgão público federal (a SPU, legítima instância política a arbitrar na querela do Horto) em fazer valer a sua missão institucional que é garantir a função social dos bens da União.

Ou seja, quando finalmente o Estado brasileiro decidiu uma questão fundiária de maneira favorável aos cidadãos históricos residentes no lugar, a partir de uma política pública capaz de contribuir eficazmente para a desconstrução de uma das mais estruturantes desigualdades históricas de nosso país (a questão fundiária e da propriedade privada x posse da terra) assistimos bestializados a uma furiosa reação das vozes e representações dos interesses contrários à essa orientação política.

A decisão da SPU incomodou tão tenazmente as elites e seu poderio econômico, que impulsionou os interessados em “erradicar a pobreza da cidade” a se unirem, desafiando a política pública emblemática do Estado, arquitetando uma manobra radical que deslocou artificialmente o poder da SPU e incluiu no jogo instâncias inapropriadas para a resolução do caso, as quais nem mesmo possuíam qualquer envolvimento orgânico com o lugar e nem competência para tratar do assunto.

Exemplo disso é o fato de terem resolvido ser o TCU (Tribunal de Contas da União) a exigir que a União retome os processos judiciais antigos e oriundos de um período anti-democrático de nosso país e, portanto, insistentes de uma lógica da permanência das desigualdades estruturantes de nossa sociedade.

A SPU em acordo com a AGU (Advocacia Geral da União) haviam suspendido tais ações no entendimento de que o processo político democratizante pelo qual o Estado brasileiro passava, deveria seguir na garantia dos direitos civis, incontestáveis aos seus cidadãos.

Desvirtuando-se de sua função social, o Estado passou a contemplar os interesses elitistas de empresários e indivíduos interessados em fazer negócios com o IJBRJ e/ou com a natureza que, como se sabe, é  uma das mais importantes moedas das trocas capitalistas contemporâneas. É onde está o investimento e especula-se a quantidade de carbono, a qualidade do solo, as potencialidades hídricas, etc, etc.

Como se percebe, além da especulação imobiliária no lugar, há ainda outros interesses na jogada. O que temos certeza, no entanto, é de que a questão fundiária do Horto está muito longe de ser ecológica. Ela é capitalista em sua perspectiva mais atual: difusa e disfarçada com estandartes ambientais que seduzem e enganam bastante gente.

Outro engodo inaceitável dito na defesa do IPJBRJ é a afirmação de que se esteja privatizando um bem público ao se conceder o direito de uso das terras da União para moradores tradicionais. Trata-se de uma total inversão do que seja público e privado, posto que o Estado vinha realizando, com a SPU à frente do processo de Regularização Fundiária da área –conforme já notamos, a implementação de uma política pública, de esfera federal, completamente coadunada com o exercício pleno da cidadania de moradores historicamente enraizados e, portanto, com o direito fundamental da posse histórica de suas casas. Ou seja, tratava-se de uma situação emblemática de atuação pública do Estado, da Re(s)pública.

O argumento de que se manter a população privatiza o IPJBRJ é raso e se desmancha no ar quando estudamos um pouquinho de ciência política, sociologia e conhecimentos afins. Privatizar o Jardim Botânico é, isto sim, vender a natureza para uma elite já poderosa usufruir sozinha de suas mansões –destruidoras da Mata Atlântica e do curso natural dos rios– construídas acima da cota 100, em total desrespeito ao Estatuto da cidade e, sobretudo, ao meio ambiente que, diga-se de passagem, sempre foi respeitado pela população tradicional do Horto Florestal do Rio de Janeiro. A mesma decisão do dia 9 de maio permite às mansões de condomínios no Alto Jardim Botânico e no Alto Gávea ficarem onde estão e do jeito que estão. Dois pesos e duas medidas… Isso não pode passar!

Portanto, é imperativo que explicitemos a questão como uma verdadeira guerra de posição , conforme Gramsci. A verdade deve ser conhecida e divulgada. Caso contrário, estaremos aceitando a volta de um passado (passado?) coronelista.

Ainda há tempo de reverter isso tudo; vamos à luta por uma cidade sustentável que todos merecemos usufruir. Trata-se de exercer a nossa cidadania e exigir que a constituição democrática se cumpra no Rio de Janeiro e no Brasil.

Originalmente publicado na Associação de Moradores e Amigos do Horto, em 14/03

* Historiadora, mestre em História e doutora em Serviço Social.

Referências:

NOVAIS, Fernando. Estrutura e dinâmica do Antigo Sistema Colonial . São Paulo: Brasiliense, 1990 (5a edição).

SILVA, Eduardo. As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura: uma investigação de história cultural . São Paulo: Cia das Letras, 2003.

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