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MR. SGANZERLA: A LIBERDADE E A VERDADE SEM LIMITES

Orson Welles, Jimi Hendrix e Oswald de Andrade é com essa mistura explosiva que Rogério Sganzerla montou as bases para o seu cinema experimental, radical e popular. Sganzerla foi um dos principais cineastas ameríndios que colocou em prática uma nova cena cinematógrafia no Brasil, o Cinema Marginal, ultrapassando assim a hegemonia na linguagem cinematográfica e no pensamento dentro da cultura da terrinha que o Cinema Novo parecia ter instituído. O Cinema Marginal emergiu com uma potência que vinha das profundezas (filmes sujos, com corpos nus, baixísssimo orçamento, com áreas degradas das metrópoles como cenário) era nos Subs, ou como Hélio Oiticica dizia no underground, que este novo cinema produzia e era produzido. Essa força-sub do cinema de Sganzerla não se ancorava num discurso sobre os pobres onde estes são vistos como frágeis, incapazes, privados de possibilidades, que vivem a escassez, improdutivos, em suma aqueles que precisam de assistência e conscientização. Muito pelo contrário, era nas figuras marginais (a vadia, o bandido, o favelado, o macumbeiro etc) apresentadas como potentes, fortes, capazes de atos impensáveis, ou seja, dotados de uma criatividade e uma produtividade desmedida, vivendo e produzindo a abundância, capazes de realizar o impossível e ultrapassar os limites impostos (transgredindo o sistema moral e econômico) que Mr. Sganzerla se lançou. Era na força-sub que residia para Sganzerla a possibilidade de reinventar o Brasil, uma reinvenção radical e necessária diante da ideia de Brasil-Potência de uma ditadura militar que em busca de uma limpeza moral e social, se ancorava num discurso de desenvolvimento econômico e na ideia de  identidade nacional – o  projeto de limpeza em marcha colocado pela ditadura através de megas-projetos como: Itaipu, Transamazônica, censura, destruição das organizações de esquerda etc. Foi nesse movimento, de reinventar o Brasil a partir da potência dos pobres, que Sganzerla acabou por lançar uma nova estética e toda uma nova forma de fazer cultura e política.

Um dos aspectos centrais dessa nova forma de fazer cultura e política estava em se propor a realizar um cinema experimental e radical, mas sem abrir mão de ser também ou principalmente popular, onde o popular não significava fazer concessões ao Mercado e ao Estado para conseguir financiamentos e/ou a projeção nas salas de cinema. O filme Bandido da Luz Vermelha (o filme mais famosos de Sganzerla) foi bastante visto na década de 60 e 70 e teve grande penetração no circuito exibidor mesmo sendo extremamente experimental (Sganzerla tinha somente 22 anos e era seu primeiro longa) e conter fortes críticas ao modo de vida da classe média brasileira ao mesmo tempo que afirmava a potência dos pobres (a personagem principal é um bandido que sempre conseguia dar um baile na polícia). Não me parece por acaso que o filme foi o grande vencedor do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, levando os prêmios de melhor figurino, diretor, montagem e filme, no ano de 1968 quando a França era implodida pelas forças revolucionárias dos “marginais” (mulheres, estudantes, proletários), movimento que veio a ser uma das grandes influências da renovação de grande parte da esquerda no mundo.

Sganzerla como dito, tinha como grandes influências Oswald de Andrade, Jimi Hendrix e Orson Welles mas também Noel Rosa e Godard. Entre as muitas influencias de Welles, uma se ressalta: o fato do tema da verdade tangenciar toda a sua obra. Na realidade mais do que ser um tema a ser explorado em seus filmes, a verdade para Sganzerla constituía uma das bases de sua filosofia. Eu diria que são duas as bases: a verdade e a liberdade. Assim como Orson Welles, Sganzerla era obcecado pela magia e pela figura do mágico. O mágico, pode-se dizer, é um tipo de ator mas com características bem específicas, enquanto a dramaturgia e a arte da atuação se propõem a produzir mentiras que levadas aos seus limites se tornam críveis, verossímeis mas nunca uma realidade (um dos jogos da atuação no teatro clássico é o fato do público aceitar entrar num universo fictício), o mágico se propõe a fazer o caminho inverso: partindo da realidade este produz uma mentira mas que de tão bem executada produz uma dúvida, a dúvida se aquilo aconteceu de verdade ou não, se o impossível é possível e verdadeiro. O mágico assim cria muitas verdades ao mesmo passo que questiona todas elas, sendo por excelência, aquele que é capaz de sem consentimento produzir uma nova realidade, uma nova verdade. Se ele não realiza isso então não conseguiu atuar. O mágico, pode-se dizer, é capaz de como Deleuze propõe, afirmar a verdade da relatividade e não a relatividade da verdade. Ou como dizia o próprio Sganzerla se mais de duas pessoas acreditam numa mesma coisa então já é mentira. A verdade assim é colocada como a singularidade, a diferença, em suma a perspectiva. Perspectiva essa que só pode emergir de uma situação de liberdade, o mágico não pode forçar alguém a ver verdade em seus atos, assim como não pode forçar ninguém a produzir uma verdade. A liberdade de produzir seu próprio ponto de vista (verdade) é primordial para que toda mágica aconteça. Não seria assim também na democracia?

Sganzerla através de seus truques evidencia algo que para a ditadura militar, mas que vale para a razão capitalista em geral, é inaceitável, o simples fato de que liberdade e verdade se conjugam para produzir a diferença, o antagonismo e a força-invenção. A magia de Sganzerla era produzir um cinema sem limites mas que também apresenta a liberdade e a verdade sem limites – que se produz no excesso dos pobres, ou seja a riqueza. O cinema sem limites de Sganzerla, podemos dizer, tinha o kairós da arte e da política radical que fundou os movimentos de minorias (feministas, negros, carcerário, LGBTs, hackers, indígenas etc), que desembocaram na produção de uma nova esquerda com Seattle 99, o Fórum Social Mundial e que agora vemos na primavera árabe e no movimento occupy em todo mundo. A liberdade e a verdade sem limites dos subs, dos marginais, dos muitos, estava no passado mas também está no agora. A necessidade de produzir uma arte e uma política radical que se proponha a desestabilizar o consenso entorno do desenvolvimentismo do Brasil-Potência, do Brasil Maior é a atualidade. O cinema de Sganzerla nesse sentido é um acontecimento, um evento atemporal, uma magia xamânica antropofágica onde estão misturados os elementos do passado e do futuro, o high-tech e o primitivo, a verdade e a liberdade. O maestro Sganzerla dizia que a música era uma magia – aqui entendemos a música como a do Jimi Hendrix que é produto da experimentação e da liberdade – capaz de transformar, que a música é revolucionária ao produzir novos mundos, esse pensamento, nos parece, está mais atual do nunca. Hoje faz-se necessário produzir novos mundos desejáveis de se viver e como o bandido da luz vermelha fazer um baile sobre a cabeça dos perseguidores, produzindo o seu próprio ritmo sem se permitir parar de dançar a intensa música da vida. Os marginais agora estão no centro!

Termino esse texto com duas frases da música Oitavo Anjo produzida enquanto o rapper Dexter estava preso no complexo penitenciário do Carandiru: “Num pássaro voando enxerguei minha verdade, compreendi o valor da liberdade” essa frase define bem o que tentei colocar nessa pequena homenagem ao Mr. Sganzerla e fecho com essa “luz para cego, que piada” ou como disse o irônico e genial Sganzerla “se não entendeu problema seu”…

Esse texto é também uma homenagem ao antidocumentário MR SGANZERLA – OS SIGNOS DA LUZ de Joel Pizzini

Trailer do filme MR SGANZERLA – OS SIGNOS DA LUZ :

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Videoclipe da música Oitavo Anjo do 509-E

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