Por Raúl Prada Alcoreza, em Dinámicas moleculares | Trad. UniNômade
—
Pablo Iglesias, na frente de cartaz de Hugo Chávez
—
Pablo Iglesias disse que não quer o modelo venezuelano para a Espanha. Haveria que perguntar-se primeiro se política tem modelo. O que é um modelo? Mais ou menos, modelo é o original que serve de molde para a série, ou se preferir, para as repetições, as imitações. Mas acontece na indústria; não há repetição sequer no artesanato, em que cada produto é singular. O mesmo vale em política, cada revolução, para usar este termo tão abusado, em seu sentido mais geral, — entenda-se ela como reforma do um ponto de vista radical; ou como revolução do ponto de vista da reforma; — é assim singular, no sentido que é um acontecimento, e enquanto tal uma composição singular de multiplicidades singulares. Uma revolução não pode ser imitada, pois responde a sua particularidade histórica, a seu contexto, às espessuras históricas, culturais e sociais de seu contexto, do espaço-tempo-social-cultural-territorial.
A revolução bolivariana é autêntica, emerge do campo das contradições sociais, econômicas e políticas, que sustentam o estado-nação, surgido da guerra de independência. Os migrantes às cidades transformaram o perfil demográfico delas, definiram um perfil antropológico dessas metrópoles “abigarradas” e barrocas da América do Sul. Essas multidões reivindicativas ocasionaram o Caracazo (1989); momento de emergência de um novo tempo político venezuelano. A rebelião das massas, a rebelião plebeia, rebelião índia, mestiça e popular contra as oligarquias, que governaram desde a independência, desde a fundação da República. Sobre a espessura dessa mobilização social, se engendra o golpe militar de Hugo Chávez (1992), como resposta carismática à múltipla crise do estado-nação. Depois de sua reclusão ao cárcere, o caudilho opta pela incursão na democracia liberal formal. A vitória eleitoral (1998) o incumbe do cargo de presidente, apoiado por uma aliança de “esquerdas” e populares cujo perfil compartilhado era o projeto bolivariano; quer dizer, a Pátria Grande, relegada desde os primórdios, quando as oligarquias regionais optaram por republiquetas, circunscritas aos limites de seus próprios preconceitos e conservadorismos.
O caudilho é a convocatória do mito. O mito é recurso simbólico e alegórico da memória social, mais do que em termos de interpretações racionais ou teóricas. O caudilho é uma invenção do imaginário coletivo, é a ferramenta hermenêutica que usam as massas para derrubar as máscaras das oligarquias no poder. Dessa maneira, quando a correlação de forças permite, o povo desprezado chega ao poder, impondo o seu mito no governo. Mas quem bajula o caudilho se equivoca: não é que o caudilho expresse uma essência revolucionária, na verdade, ele expressa as muitas contradições, os muitos conservadorismos, os muitos patriarcalismos, apesar das boas intenções e o afeto sincero pelo povo. Com o mito, a convocação do mito, o caudilho expressa o sentido imanente da plebe, o seu desejo de mudar uma realidade adversa, de inverter a história oposta; e certamente o faz com narrativas que lembram as tramas milenaristas e messiânicas. O problema não está aí, ao final, esses são recursos estéticos, narrativos paraas coletividades, para desdobrar narrativamente o sentido imanente intuído pelas multidões. O problema é que caudilho e povo se enroscam nas teias de aranha do poder, cuja história tem pelo menos meio século, senão o milênio inteiro.
A revolução bolivariana abre o processo constituinte; a Constituição bolivariana inicia o caminho da transição descolonizadora, quiçá com menos intensidade discursiva que no caso boliviano e equatoriano; se inicia a abertura à democracia participativa, pelo menos normativamente, assim como se aprofundam as conquistas sociais. Sobretudo, a revolução bolivariana alça as lutas sociais do continente com a recuperação da soberania sobre os recursos naturais. Na América Latina, têm sido fundantes os atos de nacionalização, pois sobre essa base material se avança na independência de um estado-nação subalterno. Este avanço provoca estupor nas oligarquias, burguesia e classes médias altas, que apoiam o velho regime caído. A reação dessas classes dominantes é armar um golpe de estado, coadjuvado por seus cúmplices de sempre, os dispositivos de intervenção do capitalismo. Em 2002, perpetram um golpe, aprisionando Hugo Chávez; no entanto, o golpe é detido pela defesa decidida das multidões que protagonizaram o Caracazo e, agora, no momento da barricada, protagonizam a defesa do processo de mudança, detêm o golpe, que é derrotado pela plebe impoluta. Um pouco mais tarde, as oligarquias, a burguesia, os dispositivos de intervenção imperial tentam um boicote por meio da greve petroleira; ela se prolonga colocando a economia do país numa situação difícil; entretanto, mas a vontade das massas pode mais que a vontade conservadora das classes dominantes e dos dispositivos imperiais, acostumados a que seus procedimentos deem certo, como planejavam.
Com essas duas vitórias, a defesa do governo bolivariano e a derrota do boicote petroleiro, o processo da revolução bolivariana se radicaliza. Agora se estabelecem disposições para avançar no socialismo do século 21 e no aprofundamento da democracia participativa, pelo caminho da autogestão comunitária. Que este projeto tenha se entravado em contradições, devido ao peso conservador do aparelho estatal, da burocracia esclerosada, do oportunismo abundante, inclusive da corrosão institucional e da corrupção, é o que acontece com revoluções que não destruam a maquinaria estatal e construam outra coisa, a partir das novas composições da potência social. Terminam por repetir essas taras, já fossilizadas nos governos liberais, neoliberais, conservadores e nacionalistas, do passado. Sem embargo, são dados passos adiante, com a proliferação de comunas, o estabelecimento de missões, a criação de universidades populares, o empoderamento popular dos espaços públicos.
Agora, a revolução bolivariana se debate numa crise política aguda. Que se explica, ao final das contas, porque tomou o poder e não o destruiu, por cedeu lugar à liberação social, por ter tratado de mediá-la estatalmente com os dispositivos institucionais e partidários de costume. Certamente, recorre à mesma sedução pela violência, que todas as revoluções modernas, para defender-se, retrocedem ao estado policial. Mas não porque sejam maus ou monstros, como os pintam os meios de comunicação corporativos, os meios de comunicação internacionais, a serviço da híperburguesia imperial, como os desenha o discurso das “direitas” fixadas em seus temores. Não, isto se dá, em última instância, porque têm a mão os recursos do monopólio da violência legítima. A disponibilidade de forças do estado. Recorrem ao estado de exceção como haviam feito os governos liberais, neoliberais, conservadores, nacionalistas, ditatoriais, sempre. E nisto não se diferenciam; as “direitas” não lhes poderiam reprovar o recurso à violência, pois elas mesmas o fizeram sempre, e o fariam se estivessem no poder. Então pelo menos não têm moral para dizê-lo.
Certamente, não é possível estar de acordo com o recurso à violência, por mais legal que seja; pois se trata, na democracia participativa, de avançar por consensos. Mas, para efetuar esse caminho, participativo, se requer menos estado e mais autonomia, autogestão, autodeterminação, comunidade. Se essas condições dinâmicas não se dão, não se estabelecem, não se constituem e consolidam, é muito difícil exercer a democracia participativa, senão impossível. Este é o tema do debate entre libertários e “esquerdistas” oficialistas hoje.
Então, voltando ao tema, uma revolução não se imita; política não tem modelo; toda revolução ou é autêntica ou não é. Este é o dilema do Podemos, que começou dizendo que se inspirava e seguia o caminho dos governos progressistas da América do Sul. Nada mais equivocado, não apenas por tudo o que dissemos, senão porque já sabemos onde vão parar esses governos, enroscados na teia de aranha do poder; com uma intensa expansão do extrativismo, reforço do estado rentista, portanto, consolidação da dependência, apesar do discurso “anti-imperialista”. Além de repetir os males corrosivos dos governos anteriores, adotando formas de repressão e desqualificação, adotando posturas intolerantes.
Podemos está num dilema, como dissemos noutro lugar: alteridade ou círculo vicioso de poder? O ponto de inflexão é a revolta dos indignados, configurados e aglutinados, num momento ascendente, no 15-M; Podemos emerge dessa revolta e do 15-M autogestionário; sem embargo, Podemos escolhe chegar ao poder por meio das eleições; quer dizer, tem uma estratégia de poder e não uma estratégia para destruir o poder. Este é o debate entre Podemos e os autogestionários. No debate, não é caso de discutir, como compreendeu mal Slavoj Zizek, o que seria melhor, Podemos ou os partidos tradicionais. Não acredito que isto esteja em discussão, pois a resposta é simples: é melhor que todos os tradicionais se vão, que Podemos os tire. O debate é o que fazer depois. Vão administrar a crise financeira, de que são responsáveis os governos anteriores? sejam os franquistas camuflados ou socialistas vergonhosos, as burguesias europeias, a híperburguesia mundial, os organismos internacionais, o sistema financeiro mundial e continental? ou vão iniciar uma ruptura com o passado, ainda que seja na forma de transições, desmontando essas maquinarias de desapossamento e expropriação que é o aparato do sistema financeiro, das políticas monetaristas e do projeto neoliberal, aplicados na Europa?
A autenticidade do que ocorre em Espanha depende, pois, não em imitar um modelo, mas em responder às convocações históricas, à memória social, em responder categoricamente às demandas sociais, pois o povo tem sido extorquido pelas bolhas financeiras, que têm engabelado as populações com créditos, sob altos juros, afrouxamento de requisitos; entretanto, fazendo subir ardilosamente, inflacionariamente, os preços da moradia e bens. Isso, no senso comum, é um crime. Por que despejar de suas casas os devedores, cuja dívida não podem pagar, quando se teria de julgar esses delinquentes de colarinho branco que causaram a crise financeira em primeiro lugar, que provocam as bolhas especulativas? É esta burguesia europeia que deve ser julgada, são os organismos do sistema financeiro internacional que devem ser julgados, é o G-20, esses que assistiram a tudo nas cúpulas de onde decidem as políticas financeiras; eles é que devem ser julgados. Aqui, neste dilema, não cabem discursos de realismo político nem pragmatismo, que não são nada além de encobrimentos dos retrocessos, de inconsequências e traições das expectativas populares dos que votaram neles e os conduziram até o governo.
—
Raúl Prada Alcoreza é sociólogo e filósofo boliviano, autor de vários livros e participante do grupo Comuna.