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A primavera autônoma em São Paulo

Entrevista com Raphael Sanz, jornalista do Correio da Cidadania, por Giuseppe Cocco

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Raphael viveu em primeira pessoa a potência terrível do evento constituinte de 2013, na sua dupla face como transformação do mundo e tragédia da luta. Viveu as noites de plenitude drástica nas ruas de São Paulo, conheceu os âmbitos de precária organização e os fragmentos de subjetividade que exsudavam de uma metrópole submetida a confinamentos, sofrimento e enorme cansaço. Viveu na pele a prisão, a tortura e a perseguição político-midiática, e depois juntou forças para traçar uma linha de fuga com as constelações autônomas que cresceram e se multiplicaram depois do levante. Esta entrevista antecipa algumas reflexões que estarão desenvolvidas num ensaio em elaboração pelo entrevistado. [N.E.]

O que foi junho de 2013: como nasceu e se desenvolveu?

Junho de 2013, na minha visão, foi uma revolta da juventude urbana, precarizada pelo mercado de trabalho desumano, que se traduziu como uma luta pelo acesso à cidade e contrária ao aumento das passagens de ônibus, trens e metrô em São Paulo (tudo o que falo se refere à capital paulista, onde vivo e onde começou tudo). Essa revolta é um sentimento que crescia ao longo dos anos para a juventude, em contraposição ao conto de fadas do discurso oficial de que tudo ia bem. O MPL, que completava 10 anos de luta autônoma por transporte público conseguiu aglutinar essa revolta. A coisa vai mais além, é claro, dos 20 centavos de então, mas a habilidade que o MPL teve em aglutinar tudo isso é digna de nota. Também houve um protagonismo do Anonymous, mas não tenho muita propriedade pra falar sobre isso.

Na verdade, as pessoas estavam revoltadas por não vislumbrarem um futuro que fosse algo além das fronteiras da mediocridade e da servidão. Ou seja, jovens que estudaram, ralaram muito pra fazer uma faculdade ou um curso técnico (ou mesmo para se colocaram por outras vias menos convencionais) e, ou se encontravam desempregados, ou em empregos precarizados, com salários ridículos e condições de trabalho e regras de conduta que extrapolavam o ambiente de trabalho. E ainda tinham de dar graças a deus por terem um emprego, já que “lá fora, tem 200 caras iguais a eles querendo a vaga”.

Casa própria, carro, viagem de fim de ano… todo esse sonho de consumo estava muito distante da realidade da juventude, que por sua vez, através das subculturas urbanas, pensadores críticos, artistas, teóricos, etc. buscava formas alternativas de tocar a vida e pensar o mundo – diametralmente opostas ao estado das coisas. Especialmente com o fracasso da dita esquerda do poder, as alternativas dentro da ordem se esgotaram para uma parcela grande de pessoas.

Some-se a isso uma cidade desumana, violenta, com uma guerra de baixa intensidade ameaçando a todos 24 horas por dia, a desilusão com um governo federal dito de esquerda que ao invés de melhorar as condições dessa juventude trabalhadora, agravou o que já era ruim nos períodos anteriores e desmobilizou os mecanismos tradicionais de organização. No nível municipal, um prefeito petista que a despeito de todo o discurso de uma “cidade mais humana”, não hesitou em atender aos interesses das empresas de ônibus e em menos de seis meses de mandato aumentou as tarifas do transporte público.

No ensaio que estou escrevendo, tento traçar uma genealogia de junho de 2013. Não apenas é possível perceber essa ligação, como conversando com muita gente que de fato construiu as jornadas, é possível constatar um parentesco com os setores autonomistas dos movimentos antiglobalização do final dos anos 90. Não à toa os “temíveis” black blocs consolidaram sua entrada em cena nas ruas paulistanas após junho de 2013, ainda que anteriormente já tenha sido usada a tática nas ruas, sob esse título ou não. Inclusive por setores da esquerda tradicional que mais tarde criminalizaram os jovens black blocs.

Essa juventude que no final dos anos 90 esteve nas ruas junto com a militância de esquerda contra a ALCA e o FMI e que olhava para os autonomistas de outros países, mais tarde seria o que convencionou-se chamar de “esquerda autônoma”, ou “movimento autônomo”. Importante falar da forte influência do anarquismo em suas diversas vertentes, de marxismos heterodoxos e sobretudo do zapatismo, primeiro grande movimento a contestar o neoliberalismo por fora dos vícios da esquerda tradicional. Nesse sentido, a difusão de ideias e eventos pela internet que os zapatistas usaram foi apropriada por muita gente, inclusive esta geração de ativistas/militantes.

Assim, no início dos anos 2000, diversos movimentos de pautas cotidianas, especialmente no se refere ao transporte público pipocaram pelas grandes cidades brasileiras. O primeiro a lutar por transporte especificamente e ganhar destaque foi A Revolta do Buzu (Salvador) em 2003, enquanto que em Florianópolis, no ano seguinte, o MPL-Floripa conseguiu barrar o aumento das passagens na capital catarinense. No Fórum Social Mundial em 2005, todos esses movimentos regionais se reuniram e fundaram o MPL nacional e a partir de então, sempre que houvesse um aumento, a cidade em questão iria parar. Mais ou menos como Gênova parou em 2001. Com a mesma tática de manifestação que tranca ruas e um ideário de democracia direta muito próximo daquele.

Oito anos depois da articulação de um MPL nacional, no inverno paulista, o MPL da maior cidade do país já tinha um grande acúmulo de debates, ações, manifestações e aquilo que a esquerda tradicional chama de “trabalho de base”, feito em escolas periféricas. Nas conversas informais muito se falava em catalisar uma revolta mais ampla a partir de pautas imediatas. Foi o que aconteceu num primeiro momento.

Como você viveu junho, a luta, as manifestações?

Pra mim as jornadas tinham três variantes em especial: militante ou ativista, profissional e humana.

Profissionalmente vi uma boa oportunidade de seguir em um ramo da minha profissão que sempre me atraiu, a reportagem de rua. E então fiz um acordo com o Correio da Cidadania, onde trabalho até hoje, de que faria uma série de reportagens e fotografias sobre as manifestações. Antes disso eu passava 10 horas por dia trancado numa agência de traduções ganhando mil e poucos reais por mês para traduzir, pelo menos, 80 laudas de manuais de produtos eletrônicos, relatórios de multinacionais, entre outras coisas, por dia. 10 horas por dia. E se não quisesse trabalhar também no sábado era veladamente considerado um mal trabalhador. Sem contar o tempo no ônibus. Então, para além das ideologias e utopias, vi nas manifestações uma chance de fazer algo mais interessante da minha vida. Afinal, eu já era uma pessoa crítica e ativista, com experiências anteriores de movimentação dentro disso que hoje é conhecido como movimento autônomo. Nunca fui membro do núcleo duro do MPL ou de outro movimento, mas sempre estive próximo e junto com amigos cuidei durante um bom tempo da Casa Mafalda, um centro social que buscava além de fazer festas, aglutinar esses coletivos. Apenas não tinha tido, até então, a oportunidade de atuar nesse meio como jornalista junto às ações políticas que eu me identificava. E por conhecer muita gente do MPL e de diversos outros coletivos e movimentos, me senti a vontade para ir cobrir, pois sabia que minha cobertura seria, se não boa, ao menos responsável e honesta.

Enquanto militante, eu acreditava nessa história de que uma pauta mais imediata poderia catalisar uma revolta mais ampla. E não estava errado. Apenas não havia pensado no que seria possível fazer após essa revolta se amplificar. E é justamente rememorando fatos, estudando, pesquisando e conversando com as pessoas que tento reconstituir este período nos meus escritos, para encontrar caminhos que possam explicar o que aconteceu. E nessa procura, busco me afastar das análises convencionais, pois elas ainda não explicam muita coisa, mas reafirmam teorias que podem até ser usadas, mas não dão a dimensão real do que se passava nas ruas. Ainda me falta mais embasamento teórico.

Já a forma humana como vivi as jornadas de junho tem a ver com a semana em que passei preso, injustamente. Apanhei muito, muita coisa aconteceu, mas mais do que necessariamente alguns dias em cana, tive a oportunidade de conhecer o sistema carcerário, ou ao menos parte dele, por dentro. E a partir de então não tem um dia que não pense nas pessoas que são jogadas na cadeia diariamente, e muitas vezes injustamente, ou as que esperam por anos a fio por um julgamento.

Como foi a experiência da prisão?

O que é a prisão? Sem dúvida se trata da lixeira humana de um projeto de poder, onde são jogados todos aquelas pessoas que incomodam este projeto. Não por acaso a prisão recebe especialmente os pobres. Ser preso e estar sob a custódia do Estado é horrível, claro. Mas hoje dizem que eu sou livre. Sou? Não sabemos. Corri atrás da minha vida e suei muito a camisa nesses anos que passaram, tanto a nível individual quanto em prol da coletividade. Consegui alguma melhora na vida e ando por aí, mas ainda tenho pesadelos com grades e algemas.

Na verdade, pensando em termos práticos, eu já esperava que uma coisa como essa pudesse acontecer a mim e a qualquer um que estava nas ruas. E que o Estado não teria a menor piedade de quem ele abduzisse. Não esperava que fossem me tratar de outra maneira. Fui espancado por policiais, que literalmente quebraram minha cara. No IML a médica perguntou se eu tinha sofrido uma “batidinha” no rosto. O delegado me acusou de crimes pesados logo que cheguei na delegacia, mas o que eu fazia era fotografar e colher informações. Acabei acusado de inúmeros crimes como dano ao patrimônio, crime incendiário, formação de quadrilha, vandalismo e desacato. Ainda houve uma tentativa, nas entrelinhas, de me acusar de agredir um policial, o que nunca aconteceu. Apesar de defender minhas ideias com firmeza, não sou o tipo machão que tem coragem de bater nos outros. Nem em quem é teoricamente mais fraco e muito menos em quem anda armado e goza de “fé pública”.

Ver minhas fotos acompanhadas de mentiras em série nas páginas da grande imprensa depois disso também foi lamentável e mexeu um pouco com o meu psicológico. Mas como dito, não esperava nada diferente, afinal, não se pode esperar bom senso de uma máfia que controla o Estado e os grandes meios de comunicação.

Tento desfocar essa narrativa do meu caso pessoal, dentro de mim mesmo, porque meu caso não é nem de perto dos mais arbitrários e tem muita gente presa que não tem, como eu, amigos advogados e jornalistas, nem redes de ativistas, nem uma família com condições de correr por mim. E essas pessoas estão ao deus dará, uma vez que o que chamam de Estado e de civilização é na verdade um pacto de máfias. O que é o Estado Brasileiro senão um grande consórcio mafioso que controla metade do território da América do Sul? Perguntemos aos povos indígenas.

O que você achou das posições dos intelectuais orgânicos do PT, tipo a Marilena Chauí?

Sinceramente, não esperava nada diferente dela. Especialmente porque o que as jornadas de junho colocavam, ainda que nas entrelinhas, era a falência da política de conciliação. Era uma juventude que não aceitava mais as condições de vida e trabalho as quais estava submetida – e não estou falando dos “maravilhosos jovens que abandonaram tudo para viverem nômades pelo mundo”, mas gente que rala e estava fodida e mal paga de verdade. Pagando caro pra ficar horas em pé dentro do ônibus. E como o movimento de forma geral não batia continência para as narrativas petistas, nem de nenhum partido político dentro da ordem, nada mais natural que serem descaracterizados pelos intelectuais orgânicos desses partidos, especialmente do que estava no poder gabando-se de ter transformado o Brasil em um paraíso da classe operária quando na verdade apenas manteve o velho balcão de negócios dos grandes empresários. Mas isso ainda não estava tão claro em 2013, e o movimento das ruas trouxe à tona, enquanto essa esquerda autônoma e alguns setores mais afins da esquerda tradicional estiveram nas ruas.

O que foi a primavera autônoma depois de junho?

Exatamente o que se seguiu entre a queda da tarifa e a restauração se efetivar. Podemos compreender este período entre o dia 21 de junho de 2013 quando a tarifa caiu em São Paulo e a prisão de Fábio Hideki e Rafael Lusvarghi nos protestos contra a Copa da Mundo. Acredito que depois da prisão deles, que ficaram quase 50 dias presos, é possível identificar a consolidação da restauração. Os protestos contra a Copa minguaram em todo o Brasil. Reprimidos, esses setores radicais de esquerda também foram saindo aos poucos, e as eleições de 2014 se aproximavam.

Nesse meio tempo, além das mobilizações contra a Copa do Mundo, houve um sem número de coletivos, manifestações, eventos, palestras, debates, festas, atividades etc. pela cidade de São Paulo. No centro e na periferia. Todos discutindo formas alternativas de vida, tanto a nível pessoal como a nível coletivo e comunitário. Teve de tudo nas ruas. Muitos grupos se formaram e/ou ganharam notoriedade. Foi um período muito rico e dava vontade de sair na rua pra conhecer gente e trocar ideias. Hoje já não é bem assim.

Quando e como aconteceu a restauração, qual o papel do PT?

A restauração aconteceu desde o início, com repressão policial, perseguição política, manipulação midiática e aparelhamento do movimento de rua, tanto pelo PT e os governistas, quanto pela direita beligerante e os pseudo liberais de MBLs da vida e afins. Sinceramente, eu vejo uma forte influência do PT nessa restauração, mas preciso de mais embasamento teórico e mais pesquisa para poder afirmar categoricamente.

O que posso dizer por enquanto é que assim como o Giuseppe Cocco falou em entrevista ao Correio da Cidadania, o PT de São Paulo virou uma máquina de esmagar pautas autônomas. A da tarifa zero por exemplo. Enquanto no último mês de janeiro o prefeito Haddad comparava o MPL ao Estado Islâmico por um lado, por outro chamou representantes de movimentos de juventude ligados ao PT (Levante Popular, se não me engano, mas Une e Ubes com certeza) para que representassem a luta contra o aumento em reunião à portas fechadas e lhes ofereceu uma proposta de tarifa zero estudantil esdrúxula, na qual para ser beneficiário, o estudante tinha de se filiar a UNE ou UBES. Isso invariavelmente esvaziou a pauta dando a falsa sensação de atenção do poder público.

Uma outra “contribuição” veio dos intelectuais orgânicos do PT que insistem em relacionar a multidão de junho de 2013 com a multidão pró-impeachment que ocupou seu lugar, majoritariamente centrista ou direitista. Ainda que hoje possamos debater se junho de 2013 deveria ou não ter abraçado e dado a linha do impeachment, fato é que isso não foi nem cogitado pelas ruas. Era uma pauta muito grande e perigosa para ter algum tipo de consenso e havia outras preocupações urgentes. Muitos militantes antigos, de raízes nessa esquerda autônoma, e que eu respeito muito, declararam o voto crítico por Dilma Rousseff em 2014.

Mas para além dessas guerras de ideias e pautas, acho que a repressão policial e judicial, nua e crua, teve um forte papel na desmobilização da esquerda autônoma que estacionou na Copa do Mundo e não construiu mais nada de lá pra cá, além de em muitos casos ter adotado um discurso pós moderno que particularmente não me agrada. Mas há respiros.

O CATSO (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais) é um desses respiros. Um movimento de moradia e apoio à população de rua que tem tudo para crescer e construir algo ainda maior do que as 3 grandes ocupações que já mantém na zona leste de São Paulo. Tenho estado próximo a eles aos finais de semana (jogando como zagueiro no time de futebol que armaram), pois durante a semana a correria é de trabalho e preciso pagar as contas que vencem todo mês.

Além do CATSO, acredito que o movimento secundarista também seja um desdobramento autêntico de junho de 2013, mas há um sério problema aí. Infelizmente a morte do estudante dentro de uma escola no Paraná tende a ter um efeito semelhante sobre os secundaristas ao da morte do cinegrafista Santiago Andrade no Rio de Janeiro, que praticamente decretou o fim da tática black bloc e abriu espaço para a Lei Antiterrorismo ser aprovada e para toda a repressão que se seguiu. Mortes lamentáveis que nunca deveriam ter acontecido, me solidarizo com as famílias e acho que devemos seguir observando os fatos para desenvolvermos conclusões mais com mais substância.

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