Por Inaê Diana Lieksa, para a UniNômade
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imagem: Rebecca Horn, mechanized body
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Há cerca de dois anos cravados, algum sujeito interessado em danar a minha vida, mostrou uma foto minha para aquele sujeito que, em consonância com as identidades que constituem a instituição família, se trataria da “minha” mãe. Esse sujeito que se encarregou de mostrar uma foto minha para a “minha” mãe, não fazia ideia, entretanto, de que o que ele estava fazendo, significava o corte do cordão umbilical produzido pela metafísica do parentesco. Daquele momento em diante eu percebi que, aquele sujeito por quem eu guardava uma profunda estima, em nenhum momento performatizou a identidade de “minha” mãe, seja porque nunca as estimas que carrego se constituem de uma consideração afetiva positiva pelo fato dessa pessoa ser a “minha” mãe (e isso me soa engraçado, pois tal “fato”, tal “evidência” não se fez assim para mim em nenhum momento, seja lá qual “mim” fosse o caso), seja porque essa mesma pessoa é a mãe de um sujeito que figura apenas num imaginário cisgênero de existência, ou seja, um corpo cujos desejos já se encontram delimitados e pré-determinados por dispositivos que constituem e regulamentam a cisgeneridade, segundo o velho processo fordista de arquitetura generificadora da máquina denominada ‘’corpo”.
Nesse momento do meu viver, encontrava-me al ferri corti com esse corpo denominado como masculino. Eu não o concebia como tal. Na época, eu não imaginava sequer do que se tratava uma identidade trans, exatamente porque essa é uma existência que não figura entre as possibilidades desenhadas pelo campo do possível que se nos apresenta, como uma percepção inviável. A identidade trans implica a realização de um impossível, o devir de um imperceptível e invivível. Tal reivindicação do impossível considero ser um processo revolucionário.
Ao final daquele mesmo dia, quando aquela pessoa mostrou a minha foto à minha mãe, as minhas coisas se encontravam esparramadas na calçada, e eu não tinha direito algum de me pronunciar. E isso é interessante, pois passei a perceber que reivindicar direitos, o próprio direito a existir na percepção e enquanto um possível, não seria suficiente ao longo de minha vida. Eu deveria expropriar cada acontecimento do cárcere das possibilidades, sugar por assim dizer o ar respirável do que meu corpo pode, subtraí-lo dos brutos condicionamentos e sutis controles que se impunham ao meu redor. Agir de acordo com as possibilidades já não me seria suficiente, pois a minha própria existência se dá para além desse limiar do que é percebido como possibilidade. Assim, fui diagnosticando aos poucos os dispositivos utilizados para a captura das identidades trans, e pouco a pouco me tornei uma imigrante permanente nesta sociedade de controle neoliberal, numa intensa viagem “parada” no lugar de onde, na verdade, nunca saí senão para devir. Desde o “começo”, me vi desterrada das possibilidades próprias de um cidadão fruto de um projeto de Estado-nação. É por essas e outras que sou sempre obrigada a começar as coisas pelo meio.
Alguns amigos se afastaram. Poucos se mantiveram. Novos amigos foram surgindo ao longo desse tempo, ou melhor, ao longo de minhas ações. Aprendi a olhar para cada nova pessoa que se dizia “minha” amiga com mais ceticismo. Isso pode soar negativo, ruim, a muitas pessoas. Enganam-se. Nesse processo, aprendo a olhar para esses amigos também como inimigos, como aqueles que irão a qualquer momento se opor radicalmente a mim. Isso, por sua vez, não os torna detestáveis, senão que evita de configurarem algo como a Amizade, que não passa da idealização do amigo.
Costumo dizer que ainda carrego afetos positivos por esse sujeito ao qual estive vinculada algum dia, pela metafísica do parentesco mãe-filha. Ela teve um filho. Eu, por minha vez, não tive mãe. O amor, o carinho, os cuidados dela, eram direcionados a um sujeito específico que não era eu. E como já dito acima, em nenhum momento eu desfrutei. Mas, o que então preservaria esses afetos positivos, já que a metafísica do parentesco já não se mostra nem um pouco suficiente? Talvez tenha sido isso, em nenhum momento a estima que guardei por ela se deu a partir de critérios metafísicos, ou se tratou de algo da ordem do dever. Se eu a amo? Não. O que sinto é mais para a estima.
No mesmo período do acontecimento da expulsão, eu também havia “terminado” um relacionamento afetivo de três anos. A guria com quem eu me relacionava, e com quem eu trocava deliciosos carinhos, e por quem eu nutria um sentimento profundo de admiração. O motivo do “término” foi o fato de eu assumir a identidade de transmulher. (Pus as aspas em término por não crer num fim: enquanto houver a positividade fluida da memória o termo “término” está fora de jogo). Aos poucos fui percebendo que, o que essa pessoa amava, se tratava de uma representação minha, a qual não poderia sofrer variações de nenhuma ordem, exceto se estas se dessem dentro de um sistema normativo de valoração. Hoje tomo cuidado. Assim como não creio na representatividade, tento ao máximo não me render à representação de um ser amado.
Hoje, dois anos após, olhando para esses acontecimentos, não sei ao certo se conseguiria sentir algum tipo de ódio pelo sujeito que mostrou a foto à “minha” mãe. Penso tanto nesse sujeito, quanto na “minha” mãe que me expulsou de casa, nos meus amigos que pararam de falar comigo, e na guria que “terminou” o relacionamento afetivo comigo por eu ter me assumido trans, e me pergunto: como responsabilizar quem pensa e age em conformidade com a norma? Pois essas pessoas pensaram e agiram em conformidade com a norma. E eu me vejo pensando nisso a todo instante em que ouço “mas você escolheu esse tipo de vida”. Esse enunciado se torna muito emblemático, pois ele diz, no contexto em questão, que, “quem pensa e age em dissonância à norma, torna-se responsável por suas ações”. Oras, se alguém pensa e age em conformidade com a norma, por sua vez, se trataria de um sujeito irresponsável, ou seja, apenas executa ordens.
Percebo o quanto coisas como “pátria”, “nacionalidade”, “família”, “amigos”, se tratam de regulações do desejo. Não se pode desejar sexualmente um familiar, ou até mesmo um amigo.
Penso na realização dos desejos impossíveis, que figurem em nossa imaginação como obras dadaístas, e que nos desfaçam assim como os outros sujeitos nos desfazem a todo instante. Busco uma realização de si inacabável, pois esse “si” trata-se de um desenho que se faz na areia da praia, e logo o mar devora.
Busco uma realização de si impossível, sem pátria, sem família, sem espiritualidade, sem amigo, e sem amor, acompanhada apenas por estimações que variam e oscilam, como uma cor que varia entre tonalidades diferentes e nuances sensíveis, a todo momento desmantelando as fronteiras entre as coisas, tudo isso que a Ciência, a Moral, a Norma torna ídolos a ser respeitados. Quero criar híbridos no entremeio desta vida e deste mundo, onde não mais se busquem traçar os limites de um ser víbora, ser boldo, ou ser poesia nos corpos. Sem idealizações.
Na real, eu busco o fim da humanidade.
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