UniNômade

Turquia em afogo; entrevista com Asli Berktay

Entrevista com Asli Berktay, por Bruno Cava | Trad. UniNômade

Suruc

Atentado em Suruç, 20/7/15, 33 mortos / foto: The Independent

Na interseção geográfica e histórica das lutas globais, a Turquia é hoje uma zona crítica, um campo de experimentação em que é preciso abrir novos espaços onde eles parecem se fechar por todos os lados, em todas as temporalidades. Signo do entrincheiramento dos conflitos, uma constante pelo ciclo de protestos disparado pelo levante árabe a partir de dezembro de 2010. Na Turquia de 2015, são muitas encruzilhadas diferentes — a luta curda por autonomia, a nova configuração partidária depois das eleições de junho, o autoritarismo do presidente Erdogan, o vigilantismo, a chegada do ISIS —, problemas que se entrecruzam sucessivamente e se convulsionam, numa sequência rápida de eventos onde a violência brutal muitas vezes não tarda. Nesta entrevista à UniNômade, realizada por e-mail, traduzida do inglês, a pesquisadora Asli Berktay apresenta uma síntese dessa realidade complexa de conflitos, de Parque Gezi à Kobane, da Syriza e Podemos ao HDP. (N.E.)

As eleições de junho de 2015 foram uma ducha de água fria nas pretensões do atual presidente Recep Erdogan, que não obteve a maioria qualificada no parlamento que seria necessária para realizar reformas constitucionais, nem obteve a maioria absoluta que o permitisse governar sem precisar formar uma coalizão com outras forças partidárias. A que se deve essa reação nas urnas contra um presidente que, até agora, vinha acumulando poder de maneira crescente?

Quando Erdogan chegou ao poder em 2003, claramente os setores mais conservadores e islamistas da sociedade turca comemoraram. Porém, pessoas de opiniões diversas — de inclinações de esquerda bem como liberais —, por outro lado, receberam a situação com um grão de sal. Ainda assim, muitas perceberam o acontecimento como sendo uma virada, um movimento na direção de uma maior abertura do espaço político na Turquia, de mais voz a um segmento islamista que vinha com pouco espaço de ação, no âmbito da política essencialista de identidades e do secularismo turco. O fato que estava acontecendo através de um partido que, pelo menos, parecia não ser tão radical como os predecessores, que realmente parecia ser antes “conservador” do que “islamista”, também contribuiu para a sua aceitação por um público mais amplo. E como na época a política turca vinha estagnada há longo tempo, uma voz nova e arejada de um líder carismático conseguiu receber as boas vindas. A chegada de Erdogan ao poder foi aceita como um movimento antes de qualquer coisa democrático, num contexto em que os direitos da maioria muçulmana estavam sendo comprometidos já há um longo tempo, onde mulheres que se cobriam estavam sendo ativamente banidas de universidades e outros espaços públicos, onde partidos políticos com tendências mais islamistas vinham repetidamente sendo fechados em nome do secularismo, — ainda que, nalgumas vezes, estes últimos tenham de fato ultrapassado os limites da política. O Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) parecia capaz de responder às preocupações dos islamistas, ao mesmo tempo que não ia diretamente contra aquelas dos segmentos liberais e de esquerda, pelo menos não naquela época.

A relativa aceitação de Erdogan pelo público mais geral se deveu largamente também em razão de seu compromisso inicial pela entrada da Turquia na União Europeia, para o que ele realizou algumas reformas importantes sobre direitos humanos. A crença nos esforços de Erdogan em caminhar pela via da União Europeia foi o que, essencialmente, evitou que as pessoas desistissem do governo, que as levou a votar nele para um segundo mandato, em 2007, bem como a votar “sim” para as mudanças deliberadas no referendo constitucional de 2010, sob o slogan “só isto não basta, mas sim”. Os avanços democráticos de Erdogan claramente tocaram também nos direitos das minorias na Turquia, servindo como exemplo disso os seus esforços quando se envolveu num “processo de solução” com os curdos, ou quando publicou uma desculpa oficial, ainda que parcial, pelo genocídio armênio no dia anterior de seu 99º aniversário, em 2014.

Ao mesmo tempo, contudo, o ego e as tendências ditatoriais de Erdogan estiveram constantemente em ascensão. O legislativo e o judiciário caíram vítima do executivo com cada vez mais frequência e a corrupção atingiu níveis nada desprezíveis, especialmente durante o terceiro mandato de Erdogan, a partir de 2011. Essas tendências cristalizaram mais fortemente depois de 2013, com as intervenções constitucionais, a esquiva das acusações de corrupção, e a liquidação das mesmas vozes alternativas que ele antes tinha saudado em seu próprio governo. Ainda que tendências antigoverno e anti-Erdogan se faziam evidentes no contexto dos protestos de Parque Gezi (2013), as tendências ditatoriais pessoais culminaram na decisão de abrir as eleições presidenciais ao voto público, de maneira que ele pudesse ser eleito ao cargo de presidente. Os argumentos de Erdogan foram abertamente em favor de uma transição ao presidencialismo, o que poderia consolidar os seus poderes num grau ainda maior do que na república parlamentarista. E ele foi, previsivelmente, eleito presidente em 2014. Em contradição com o papel de um presidente num sistema parlamentarista, Erdogan continuou ativamente a tomar partido na política, a ponto mesmo de se empenhar na campanha para o AKP nas eleições parlamentares deste ano.

Embora as críticas eram feitas em profusão contra Erdogan e o AKP, um grande tema permaneceu por bastante tempo sem que houvesse uma oposição real na Turquia. Por um longo tempo, a esquerda não era uma esquerda real, a oposição não tinha uma base real ou qualquer agenda concreta. E certamente não havia líderes tão carismáticos quanto Erdogan para preencher o vazio que ele estaria deixando para trás. Até que Selahattin Demirtas se apresentou como o líder que poderia cumprir esse papel. De maneira semelhante ao caso de Erdogan, mesmo aqueles que se posicionam contra ele politicamente, são capazes de reconhecer o carisma de Dermirtas, a sua energia e o fato que ele poderia verdadeiramente representar uma voz nova e ativa na política turca. O seu partido, o Partido Democrático Popular (HDP), igualmente respondeu às necessidades da política turca do momento, do mesmo modo que o AKP havia feito em 2003. Enquanto o último tinha conseguido trazer a maioria muçulmana à arena política e praça pública, o HDP teve o objetivo de fazê-lo quanto à questão curda e, por extensão, aos demais grupos de minorias. O HDP também parecia ser capaz de preencher a lacuna de longa data deixada pela falta de oposição na política turca, representando uma nova voz à esquerda, passando a abordar um campo abrangente de questões que recentemente estavam se conectando nos imaginários nacionais e globais.

Nessas eleições, o HDP, — fundado em 2012 e reunindo grupos ambientalistas, antinucleares, antinacionalistas, esquerdistas, anticapitalistas, antinacionalistas, pró-curdos e movimentos LGBT, — teve 13% dos votos e assim ultrapassou o mínimo de 10% dos votos, que na legislação turca constitui uma “cláusula de barreira” (abaixo disso, os votos são redistribuídos entre os partidos com mais de 10%). O que significa para as lutas das minorias (mulheres, LGBT, curdos) esse resultado?

A vitória do HDP representa um ganho para todos os grupos minoritários citados acima, bem como para os grupos não-minoritários, como o de mulheres, mas que vêm sendo tratados como tal historicamente. Quando evito traçar uma hierarquia entre assuntos de minorias — uma tendência que considero extremamente perigosa nos Estados Unidos, onde, por exemplo, várias pessoas defendem hoje em dia que a luta dos civil rights não pode ser comparada com a dos direitos LGBT, — eu ainda acho que os maiores ganhos foram experimentados no tocante às minorias étnicas (e, por extensão, religiosas). O partido em que se tornou o HDP em 2012 havia existido antes sob muitos nomes, desde quando o HADEP (antigo partido pró-curdo) fora fundado em 1994, quando a luta armada dos curdos ainda buscava abrir uma filial política. Em nenhum momento, no entanto, os partidos precedentes foram capazes de criar um guarda-chuva político mais abrangente a fim de incluir outros grupos. Talvez até mais significativamente, em vez de antinacionalista e de esquerda como o HDP, eles assumiam uma identidade curda mais nacionalista. Essas foram as principais razões por que aqueles nunca foram capazes de ultrapassar a cláusula de barreira dos 10% dos votos. A manobra política de incorporação no HDP, assim, foi uma manobra essencial e com consequências importantes. Ela mostrou ao país que os curdos e seus aliados representam uma força política significativa. Tornou evidente que os direitos de minorias étnicas estão estreitamente ligados a muitos outros temas, incluindo preocupações ambientais, antinucleares e anticapitalistas. Ao fortalecer um entendimento vis-à-vis a necessidade vital de solução da questão curda, também possibilitou fazer isso numa plataforma com foco antinacionalista. O HDP se apresentou como o “partido da Turquia”, representando toda a diversidade e as diferenças envolvidas nessa expressão.

Ao ultrapassar o limiar dos 10%, o HDP inicialmente permaneceu leal a suas promessas ao traduzi-las em ações, ao trazer um grande número de mulheres, indivíduos LGBT e membros de outras etnicidades e religiões diretamente ao parlamento. Nesse processo, Demirtas também manteve a promessa que havia feito, em relação ao fenômeno do que viria a ser chamado de “voto emprestado” — membros da fração secular que não concordavam exatamente com muitos dos princípios do HDP, mas que declararam que iriam votar no partido em concordância com suas promessas de tornar-se o “partido da Turquia”, desafiando as tendências totalitárias de Erdogan, e ultrapassando os 10% [N.T.: a cláusula eleitoral de barreira na Turquia desclassifica da disputa os partidos que obtiverem uma votação inferior a 10%, não elegendo assim nenhum candidato], que foi mantido embora seja irrazoavelmente alto e altamente injusto. Depois das eleições, Demirtas declarou claramente que não entraria numa coalizão de governo com o AKP e que, desde as eleições de 7 de junho, nenhum dos partidos foi capaz de chegar a um acordo por um governo de coalizão, o que tem provocado um efeito negativo à economia e à política do país. Depois da frustração sentida por todos os lados veio o caos, que tem sido bastante evidente nas últimas semanas. As bombas em Suruç na fronteira entre Síria e Turquia, em 20 de julho de 2015, mataram 33 pessoas e feriram muitas outras, entre elas um número significativo  de voluntários socialistas, que foram à fronteira ajudar nos esforços de reconstrução em Kobane.

A resposta veio por meio de retaliações por parte do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que também resultaram na morte de muitos membros das forças armadas e policiais, e de civis. O governo atual reagiu atacando as bases tanto do Estado Islâmico (ISIS), quanto do PKK no Iraque. Simultaneamente, o governo se envolveu na repressão de muitos e diversos modos. Ele cancelou a passeata do orgulho LGBT em Istambul (durante o que novamente adotou medidas repressivas contra os participantes), bem como a passeata que havia sido marcada logo na sequência dos acontecimentos em Suruç. O governo também prendeu um número relevante de apoiadores do HDP e ativistas antigoverno. Uma preocupação crescente, agora mesmo, é que estaremos provavelmente caminhando para novas eleições, que podem reverter ou não as conquistas das eleições de 7 de junho. Isto se dá porque, claramente, Erdogan é incapaz de aceitar os últimos resultados eleitorais.

Em 2013, a Turquia esteve no foco do mais recente ciclo global de protestos disparado em Túnis, em dezembro de 2010, num cenário de crise do capitalismo. Num artigo ao The Guardian, no dia seguinte à eleição, Alev Scott, autor de “The Turkish Awakening”, coloca o resultado também como legado do Parque Gezi. Qual a relação entre a ecologia de movimentos fomentada pelo levante de 2013 e a vitória do HDP? Michael Hardt, numa residência de duas semanas na Universidade Bogazici, em Istambul, constatou o saldo organizativo de Gezi um ano depois, com a mistura de grupos antes separados que passaram a se reinventar juntos, bem como a maior visibilidade de pautas de minorias que, hoje, estão no programa do HDP.

Os protestos de Parque Gezi expressaram o desejo por liberdade e a afirmação de uma ampla gama de demandas por direitos, até então jamais testemunhada na Turquia. Embora a juventude turca foi por natureza ou altamente politizada ou largamente apolítica nas últimas décadas, acredito que por meio da participação ativa nos protestos, ela foi capaz tanto de redefinir a política para si própria, quanto redefinir-se enquanto ser político ativo. Ocupar e reivindicar um espaço público e muito visível, em que se possa estar juntos não apenas através daquilo que é comum, como também em meio às diferenças. Nesse sentido, realmente se abriu o caminho para um entendimento alternativo da política e para a criação de novos modos de existência e linguagens sociopolíticas, ambos os movimentos muito necessários na Turquia. Foi também extremamente significativo ao trazer a política de um ambiente confinado para a esfera verdadeiramente pública, semelhante a como a política foi tradicionalmente entendida, como implicada em configurações da vida cotidiana e na arena pública, em várias coordenadas não-europeias, entre as quais se destaca primeiro e sobretudo a América Latina.

A politização da ecologia e do meio ambiente esteve no centro dos protestos de Parque Gezi, assim como o anticapitalismo, como eu disse antes. Além do conservadorismo religioso e da abordagem que daí decorre na questão do gênero, outra característica do governo de Erdogan é o seu capitalismo. Sob o AKP, shoppings no valor de um milhão de dólares foram construídos em Istambul, deixando poucas áreas ainda verdes, com um grande número de terrenos, inclusive de importância histórica, sendo liberado para a venda e para novos empreendimentos. Alguns exemplos recentes incluem o Grande Bazar e a principal casa de Istambul para idosos, cujos jardins foram entregues para novas construções. As reações indignadas das pessoas vêm se acumulando há um bom tempo e chegaram no limite no momento em que fora decidido que um dos últimos espaços verdes nesta super-desenvolvida cidade seria demolido.

As dimensões históricas do tema “Parque Gezi” têm sido pouco exploradas, especialmente fora da Turquia. O Quartel Topcu que Erdogan planejara reconstruir no espaço do atual Parque Gezi era um dos principais quartéis das facções mais islamistas do exército, durante o contragolpe de 1909, conhecido por “Incidente de 31 de Março”. Erdogan, tendo crescido em subúrbios carentes de Istambul e permanecido às margens da sociedade por sua posição social e religiosa, sempre fez questão de reclamar a cidade mais importante da Turquia à facção conservadora islamista que ele representa. Creio que a reivindicação de Parque Gezi representou o epítome desse fenômeno, motivo pelo que Erdogan não abandonou o projeto original do quartel. O fato que essa reivindicação e o desrespeito da história e do meio ambiente se encontraram com o capitalismo exagerado do AKP deixou extremamente claro a todo mundo as ligações entre ecologia, política, movimentos sociais e mídia.

Pessoas jovens, tanto as que se sublevaram dentro quanto fora da tradição de movimentos de esquerda e do ativismo, estavam precisando dessas ligações e de um modo alternativo de fazer política a fim de mobilizar-se. Os protestos de Gezi lhes forneceram o tão necessário ambiente e contexto. Nesse contexto, certos paralelos podem também ser traçados com a América Latina, através da maneira que os movimentos internacionais de direitos ambientais se entrelaçaram com questões de direitos dos indígenas, como experimentado por toda a região amazônica, tornando-se um movimento altamente bem sucedido no Equador, e permanecendo como um dos mais importantes desafios no Brasil.

Muitas dessas preocupações apelam a um espectro abrangente de pessoas de todos os segmentos da sociedade. Essa é a razão porque muçulmanos conservadores jovens também se uniram ao movimento, já que seus entendimentos e modos de autoexpressão diferiam daqueles mais tradicionais dentro do AKP no poder. O Parque Gezi se tornou um fórum para os direitos LGBT, onde grupos de esquerda, que nunca se tinham associado com outros pela causa deles, encontraram a oportunidade de enxergar paralelos, e assim conquistar um melhor entendimento das dificuldades experimentadas pelo grupo. Um mundo alternativo foi criado no parque, formando-se uma comuna de igualdade de gênero e étnica entre as pessoas que leram, escreveram, ouviram música, meditaram e, com isso, resistiram de maneiras não-tradicionais. Ele ajudou-as a compreender que pouco importava quais seriam as suas diferenças, porque eles sofriam em virtude de tratamentos semelhantes. Nesse caso, os manifestantes em Parque Gezi também tinham um vocabulário comum de resistência, um novo entendimento da política, e um entendimento conjunto de como eles queriam se colocar eles próprios como indivíduos independentes e jovens, e sujeitos políticos com preocupações que diferiam em relação a seus predecessores e que correspondiam a novas realidades globais. Como disse noutro lugar nesta entrevista, todos esses constituíam elementos diante do que o HDP construiu um modo alternativo de fazer política, abrindo-se à política, e reunindo os assuntos relacionados com direitos minoritários e política de identidade debaixo do guarda-chuva maior da resistência às opressões do estado-nação. Apesar disso tudo, seria importante declarar aqui que, especialmente no começo, o HDP evitou participar dos protestos de Gezi, por medo que a sua participação direta nos protestos pudesse prejudicar o “processo de solução” sendo conduzido em colaboração com o AKP. Esta situação gradualmente foi mudando, até certo ponto, mas ainda hoje é complicado estabelecer um vínculo direto entre os protestos de Gezi e o HDP.

Você vê proximidade ou distância do HDP com a experiência da frente do Syriza, na Grécia? Ou com a plataforma cidadã do Podemos, na Espanha?

Sem perder de vista as importantes diferenças de contexto — histórico, social e cultural — entre esses diferentes movimentos, eu vejo mais semelhanças. No final, movimentos sociais nunca se dão num vácuo e, no mundo cada vez mais globalizado de hoje, é difícil para um movimento social não subir nos ombros dos predecessores e influenciar futuros movimentos. Da Primavera Árabe em diante, os protestos se estenderam numa geografia complexa englobando partes do mundo tão distintas quanto Turquia, Espanha, Grécia, Brasil, assim como outros lugares; bem como os movimentos políticos que se projetaram a partir deles, se basearam neles e permaneceram ligados a suas sensibilidades, tais como o HDP, o Syriza e o Podemos. Todos eles se construíram num espaço político transnacional, através de um entendimento extremamente inclusivo da política, que desafiou amplamente a ordem neoliberal. Eles trouxeram junto todo tipo de minorias e atores políticos de identidades alternativas, enquanto participantes contra-hegemônicos de uma política redefinida e alargada que uniu mediante suas diferenças bem como suas semelhanças.

Na geografia complexa da Turquia, os protestos de Parque Gezi certamente aconteceram participando de um contexto global que dispôs, por um lado, as suas raízes na Primavera Árabe mediante as ligações com o Oriente; por outro lado, em relação ao Ocidente, os seus ramos se alimentam da participação em diálogos com o Podemos ou o Syriza. Um processo similar de retroalimentação a partir de modos alternativos e novos de fazer política também era evidente nesses movimentos. O mesmo argumento é válido para os protestos no Brasil que primeiro ocorreram em São Paulo e, então, se expandiram em 2013. De maneira parecida, o que é agrupado como eventos de Parque Gezi na Turquia também se disseminou ao longo do país, e esses eventos foram experimentados de modos diferentes, com diferentes focos e em configurações distintas, por toda a Turquia. A recente intervenção ativa da sociedade civil na política é verdadeiramente um fenômeno global. É também um fenômeno global assumir a política para além das esferas tradicionais a que previamente ela era atribuída, especialmente no Ocidente. Enquanto na América Latina, as esferas das discussões políticas não tinham sido historicamente bem delineadas e prescritas — com espaços cotidianos públicos sempre abertos a ações e discussões políticas —, esse não foi o caso do Oriente Médio ou da Europa Sudeste, não na mesma medida. Então, vale dizer mais uma vez, as ligações que eu tracei entre todos esses movimentos, tal como a “politização” das lutas ambientalistas e a unificação de identidades alternativas, são igualmente um fenômeno global, que consequentemente se abre a vários paralelos globais.

Depois de 2013 na Turquia, como no Brasil, seguiu um período de intensificação das medidas vigilantistas e diretamente repressivas coordenadas pelo governo contra ativistas e novíssimos movimentos. Uma das investidas do governo Erdogan foi contra o Twitter, que chegou a sofrer um blecaute em 2014. De que modo as redes ativistas na Turquia enfrentam esse desafio? A via institucional, através do HDP, pode ser lida como uma tentativa de movimentos que vivem o cerco de abrirem um novo front em meio a esses impasses?

A internet exerceu um grande papel nos movimentos sociais que aconteceram a partir dos eventos de Parque Gezi, da mesma forma que em todos os movimentos sociais semelhantes, da Primavera Árabe em diante. Durante Gezi, as pessoas se organizaram online, mantendo contato com o que estava acontecendo, decidindo como e onde reagir à violência policial, e elas aprenderam sobre como poderiam se refugiar das ações repressivas etc. Mas elas também usaram a internet como um instrumento importante para zoar o governo e seus esforços repressivos. O humor foi presença constante durante os protestos em Gezi, desde fantasias até slogans, passando por atitudes pacíficas irônicas contra as autoridades e seguidos comentários humorísticos pelas redes sociais, desafiando as retaliações do governo.

A repressão do governo contra as redes sociais não se limitou ao Twitter, englobando também o Youtube e mesmo o Facebook, em distintos momentos. Ela tampouco se limitou ao ano de 2014. Realmente, lembro-me de vir a Istambul durante as férias, tão cedo quanto 2010, e ficar chocada ao não conseguir acessar o Youtube. Mas a minha irmã, que então tinha apenas 16 anos, já sabia como usar os “proxies” mais variados a fim de contornar a proibição. Ao longo do tempo, as pessoas na Turquia, e especialmente a geração mais jovem, se tornaram experts em usar “proxies” de toda sorte, bem como endereços alternativos de IP. Apenas alguns meses mais tarde, quando o Twitter (e novamente o Facebook e também o Youtube) estava mais uma vez fechado por um período muito mais curto, as pessoas mandaram bem ao acessar o Twitter mediante o uso de endereços alternativos de IP, para novamente zoar os esforços repressivos do governo.

A outra vez em que o uso da internet foi restringido pelo governo se dera quando o acesso 3G havia sido cortado durante os protestos de Parque Gezi, diante do que as pessoas perambularam com redes WiFi abertas pela área Taksim. Muitas lojas que normalmente usam WiFi protegidos os compartilharam em solidariedade aos manifestantes. O blecaute de redes sociais tem sido um fenômeno comum na Turquia sob o AKP, e driblá-lo tem sido de maneira semelhante um dos fenômenos que mais irrita Erdogan, especialmente a partir do momento em que as proibições são feitas em reação a críticas antigoverno. Pessoalmente, eu uso um endereço alternativo de IP o tempo todo enquanto estou na Turquia, uma vez que ele também me permite acessar os muitos sites proibidos por serem “imorais”, ou então “antigoverno”. Muitas outras pessoas fazem isso também, já que aceitar a censura governamental das redes sociais e de recursos online continua sendo inaceitável à maioria, num momento em que as redes se tornaram parte importante de suas vidas.

O HDP, claro, representa a abertura de muitos impasses, a criação de uma frente representativa nova incorporando muitos elementos “censurados” ou “controlados” na sociedade. Demirtas também deixou isso claro durante a campanha eleitoral, em que ele foi extremamente ativo na internet e apresentou uma imagem bastante diferente daquela de Erdogan. Ele foi capaz de colocar-se como uma alternativa clara, graças a seu comportamento caloroso, a sua proximidade com as pessoas, sua relação igualitária com a esposa, e a diversidade dentro de sua família. Ele foi o candidato que sorriu e chorou, que tocou música e dançou. Ele também fez uso de sua conta no Twitter para fazer críticas antigoverno com humor e ironia, de um modo que foi bastante semelhante àquele experimentado durante os protestos de Gezi, e assim conseguiu apelar à linguagem contra-hegemônica que já era conhecida e aceita por muitos.

Uma das lutas que tem sido relativamente bem divulgada nas redes militantes no Brasil é a de Kobane que, com a intervenção ocasional de bombardeios de apoio da OTAN, tem conseguido repelir o avanço do Estado Islâmico sobre os territórios curdos. Uma das relações que podem ser estabelecidas entre a luta curda e o Brasil está no movimento indigenista. Os indígenas no Brasil resistem a projetos de desenvolvimento realizados por um governo populista-desenvolvimentista. Esses projetos simplesmente descartam os modos de existência indígenas, pois o governo se recusa a discutir projetos alternativos, que não passem pela integração nacional, modernização e proletarização… autoritárias. A luta indigenista afirma também uma alternativa de desenvolvimento endógeno e modo de vida ecológico. De que modo Kobane poderia ser pensada como uma luta “des-nacionalista”, que escape da velha matriz identitária do regionalismo?

Embora eu acredite na importância de traçar ligações e paralelos entre questões similares num contexto global, eu também acho que não devamos forçar tais paralelos, ou buscá-los onde eles realmente não existam. O assunto dos direitos das minorias curdas é fundamentalmente diferente. Diferentemente de muitos dos povos indígenas das Américas, inclusive do Brasil, os curdos na Turquia — que é de longe o maior grupo étnico minoritário dentro do país, com 15,7% a 25% da população — são um dos elementos constitutivos fundamentais do estado turco. Eles nunca representaram uma “alternativa de desenvolvimento endógeno”, nem se esforçaram por modos alternativos de vida, exceto em seu desejo de ser reconhecidos como um componente fundamental da sociedade, que eles de fato são. Mesmo em seu desejo de criar um estado-nação independente curdo, isto não implicaria uma vida alternativa diferente. A maioria étnica turca não respeita o pacto que eles fizeram com os curdos no tempo da criação do primeiro parlamento. Eles não honram ou reconhecem o papel fundante dos curdos na República. Isto levou a numerosos levantes da parte dos curdos da rebelião de Sheikh Said de 1925 em diante, e depois levou à formação do PKK — a organização militante que lutou pela independência curda.

Quando o governo central na Síria perdeu o controle no norte e no leste do país, muitos pequenos agrupamentos em termos étnicos apareceram nessas áreas. Entre eles, estavam os curdos que vieram para dentro das fronteiras sírias e que seguiram uma política e uma organização semelhante àquela do PKK, criando cantões ou áreas especiais curdas. Quando o ISIS emergiu de dentro do Islã radical, primeiro capturou algumas áreas no Iraque, e então buscou expandir os seus territórios ao mover-se à Síria. O ISIS alcançou as áreas curdas e foi recebido com uma resistência generalizada. A questão é complexa, envolvendo elementos tais como curdos frequentemente oprimindo elementos não-curdos, e mesmo reprimindo outros curdos que não compartilhem de seu próprio entendimento da política; mas complexa também por causa da questão do apoio do governo turco ao ISIS. Em qualquer caso, entretanto, embora Demirtas tenha dito que Kobane constituía uma questão de honra essencial para a Turquia, e acusou o governo de não apoiar a resistência de Kobane, e mesmo de bloquear a chegada do necessário apoio, Erdogan tomou apenas medidas limitadas com respeito a essa questão. Em vez do ISIS, o presidente entendeu que a ameaça primária seria uma região curda autônoma. Os curdos da Turquia abraçaram Kobane através do sentimento de defesa da pátria e, dominantes pela primeira vez na área, fizeram com que Kobane se tornasse uma luta diretamente vinculada à luta curda como um todo. Com a chamada de Demirtas em outubro do ano passado, muitas pessoas, especialmente mais jovens, ocuparam as ruas em protesto, com um saldo de 31 mortos numa sequência de manifestações que se estendeu por diversos dias.

Resumindo, embora obviamente parte de uma luta antinacionalista mais ampla, seria implausível apontar paralelos com o movimento indigenista no Brasil. Os dois países apresentam dinâmicas étnicas diversas, o que também se refletiu na participação dessas etnicidades nos processos de construção nacional.

 

Asli Berktay é doutora em Estudos Latinoamericanos de Tulane University. Sobretudo historiadora, tem dado aula, pesquisado, e publicado em diversas disciplinas, incluindo antropologia, política, sociologia, comunicação, e etnomusicologia.

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