Por Rafael Barros, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações
Derramamento literário e verborrágico de sensações em meio ao sufocamento político-midiático mediante a maldição sistemática e diuturnas das palavras ‘vândalo’ e ‘vandalismo’.
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Como a palavra “vandalismo” está em voga nas mídias, graças aos protestos que têm acontecido em São Paulo contra o aumento das passagens – ou seria contra o abuso do poder público e privado, um crescente descontentamento do povo com aqueles que detém o poder de tomar as decisões sobre a cidade? -, sendo usada tanto contra os manifestantes, quanto contra os responsáveis pelas insatisfações deles, resolvi procurar o sentido nos dicionários.
Bom, as palavras não cabem em dicionários, não cabem em palavras, as palavras só cabem a nós, porque elas são mais do que cifras, mais do que sons, do que um significado encerrado, conceitos objetivos – as palavras são o que a gente quiser! Fluem! Tá, eu sei que precisa de alguma coerência, ordem, estabilidade, pra que haja algum entendimento delas mas, indo na onda do poeta Bandeira, será que as almas se entendem?…
Voltando ao dicionário, ele guarda significados da palavra que persistam há algum tempo, o que é, de certa forma, compreensível – imagina o trabalho todo: ficar inserindo e retirando significados, toda vez que uma expressão ganha um sentido, ou toda gíria que aparece, que nem sabemos se irá colar –, e isto faz com que não traga consigo um possível entendimento atual sobre ela. Superando este imbróglio, encontrei os significados abaixo.
Michaelis:
vandalismo: “sm (vândalo+ismo) 1 Ação própria de vândalo. 2 fig Destruição do que é respeitável pelas suas tradições, antiguidade ou beleza.”
vândalo: “Indivíduo que comete atos funestos às artes, às ciências e à civilização. Adj 1 Bárbaro, sem cultura, selvagem. 2 Destruidor”
Dicionário Online de Português:
“Vandalismo (…) Destruição de obras de arte, de objetos importantes, por ignorância, selvajaria ou falta de gosto.”
Dado estes significados, digo:
Sim, nós somos Vândalos!
Embora eu não esteja lá, nas manifestações em Sampa, “estou com os manifestantes”, empolgado, ansioso, torcendo daqui, apoiando, ficando feliz a cada notícia de que um um objeto (ônibus, vidraça…) foi quebrado, me indignando. Estou com eles e contra seus inimigos. A ideia de destruir coisas tradicionais, presente nos dicionários, me cativou: “destruidor”, “Destruição de obras de arte, de objetos importantes, por ignorância, selvajaria ou falta de gosto”. Nós somos Vândalos e não temos bom gosto mesmo, já que o bom gosto é aquilo que a burguesia instituiu como tal! Nosso Rap não é bom gosto! Nosso funk não é bom gosto! Nosso punk já foi sujo demais; nosso samba, marginal. Nosso pixo não é arte. Nossa poesia é pobre!…. E nós somos de todas as cores, sexos, de qualquer idade… de todos os modos.
Mas eles… bom, eles são homens e são brancos, tem narizes finos e empinados. <esmo os que não nasceram assim, cresceram assim, aprenderam a cultuar o europeu, o HOMEM europeu – afinal, nosso vocabulário não sustenta “homem” como sinônimo de “humano” à toa – e trazem carros luxuosos presos ao corpo, como marca da evolução a que chegaram. Isto é bom gosto, eles! Nós somos sujos e feios! Bonito são eles, o jeito deles, quilos de maquiagem escorrendo pelo ralo, embalagens de supermercado, outdoors, incontáveis resíduos de lixo. Bonita é a fumaça saindo dum carro que desfila, luxuosamente, pelo engarrafamento da cidade. Não, eles nem sempre são economicamente afortunados, apenas acreditam que isto é “riqueza”, – ah! pode ser também, podem ficar com esta palavra, temos outras mais legais: “bem”, “felicidade”, “harmonia” (poxa harmonia é ótima, porque implica na necessidade de uma boa relação entre partes de um organismo complexo –; sustentam isto; vivem por isto; competem por isto, e estamos fartos de lidar com seus caprichos narcisistas.
Nós somos Vândalos e somos maioria! Se não podem respeitar nossa cultura, por quê acham que temo que preservar a sua? Porque é melhor?! Quem disse? Meia dúzia de especialistas?! E quem lhes conferiu este título? E quem foi que deu o “poder” de conferir? E que “poder”? Desce daí, se quiser falar comigo, ou então não te ouvirei.
Se dissermos que é algo é bom, é bom! Não precisa gostar, mas isto não tira nossa satisfação, não faz deixar de ser bom – agora, se alguém ultrapassar esse limite, e tentar nos enfiar os seus modos goela abaixo, também teremos que ser violentos. Nós não queremos espelhinho, nem padres para salvar nossas almas, a menos que queiram trocar experiências, ou nos passar as suas sem a intenção de obter vantagens, nem nos forçar a “aceitar”. Estamos fartos de empresas que “ajudam” pobres, deficientes físicos, doentes, ou promovem eventos culturais pra receber abatimento dos impostos, usando dinheiro público em marketing, divulgando e melhorando a própria imagem. Também estamos cansados do dinheiro e da noção, antidemocrática, vigente de “publico”.
Estamos cansados de Lucianos Hucks, Didis bocós, garotos propaganda da manutenção do status quo – onde somos relegados à miséria -, com um sorriso de bom moço. Dane-se o altruísmo deles. Afinal, a tradição não nos serve, por quê a preservaremos?
Somos Selvagens! E o ideal progressista da civilização não nos interessa! Somos Bárbaros! Beatniks! Punks! Somos Luther Kings! Zumbis! Poetas de toda espécie! Somos Ednas Millay cheias de vida! Somos prisioneiros de Auschwitz, ou de qualquer sistema carcerário pelo mundo! Somos fugitivos! Somos Timothy Learys chapados! Simones de Beauvoir! Emmas Goldmans! Somos uma película de Chaplin! Uma rádio comunitária! Jovens matando aula! Maconheiros! Vadias! Viados! Somos manifestantes turcos, paulistas, cariocas… Somos favelados! Palestinos! Indígenas! Sem terra! A cara de uma criança que acabou de fazer “coisa errada”.